Quando na manhã chuvosa de 20 de janeiro de 2017, em Washington, o bilionário e estrela de reality shows, Donald Trump, tomou posse como o 45º presidente dos Estados Unidos, o mundo assistiu atônito ao coroamento de um processo de contestação à democracia liberal nunca visto desde a década de 1930 do século passado.
Com uma retórica de extrema direita, atacando minorias e pregando o restabelecimento da lei e da ordem, Trump prometia fazer a “América grande de novo” se colocando como o candidato da classe média branca empobrecida contra um sistema corrupto que havia enfraquecido a nação ao destruir seus valores culturais, religiosos e familiares. “Drenar o pântano” era sua promessa principal – ao lado da construção do muro ao longo da fronteira sul dos EUA. A ascensão de lideranças com retórica semelhante por toda a Europa foi o antecedente à sua eleição; seguida esta, pela saída, com fúria nacionalista, do Reino Unido da União Europeia e, aqui, pela eleição de Jair Bolsonaro à Presidência com o slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.
A dimensão do atual abalo à democracia liberal foi muito bem demonstrada em O Povo Contra A Democracia, do cientista político Yascha Munk. Nele, Munk enfileira uma série de pesquisas que demonstram, essencialmente, que, por todo mundo desenvolvido – habitat natural da democracia liberal –, há um crescente desencanto com regimes democráticos e um aumento expressivo da simpatia por eventuais experiências autoritárias. Também na América Latina, pesquisa do Latinobarômetro, de novembro de 2018, indica que a aprovação à democracia no continente girava em torno de 48%, sendo que apenas em nove países o apoio superava a marca dos 50%. Ouvida pelo O Globo, a diretora do instituto, Marta Lagos, se referiu àquele ano como sendo o annus horribilis da democracia na América Latina.
Embora seja tentador traçar paralelos entre a atualidade e a ascensão do nazi-fascismo nos anos 30, é sempre necessária muita cautela ao se comparar episódios históricos. O uso de nomes tradicionais – como fascismo ou comunismo – certamente são rótulos poderosos, capazes de galvanizar militâncias políticas, mas tendem a confundir, mais do que esclarecer. Tais constatações, entretanto, não significam que não possamos olhar para o passado e encontrar processos semelhantes, que nos ajudem a lançar luz sobre o presente. Marx escreveu – acerca do 18 Brumário – que todos os eventos importantes da História acontecem, por assim dizer, duas vezes: a primeira vez como tragédia; a segunda como farsa. E é inegável que nossa época, não obstante trágica e perigosa, tem muito de farsesca.
Rousseau, em O Contrato Social, colocava como condição necessária à democracia que as diferenças de poder entre os cidadãos não poderiam ser tão grandes a ponto de “ser exercidas como violência”; da mesma forma, ninguém deveria “ser tão rico que possa comprar o outro, nem tão pobre que seja obrigado a se vender”. Quando estas diferenças atingem padrões muito elevados, a democracia se degenera em oligarquia ou plutocracia, na qual apenas uns poucos, de fato, participam, de forma relevante, no poder político.
Em artigo anterior, no qual traçamos um panorama do neoliberalismo, argumentamos que sua marca é, através financeirização da economia, a produção de uma imensa desigualdade socioeconômica, com o esmagamento da renda do trabalho e o empobrecimento dramático da classe média. Mencionamos que Thomas Piketty demonstrou que esse processo era, em vários aspectos relevantes, semelhante àquele ocorrido entre meados do século XIX e o final dos anos 1940, quando as consequências da Segunda Grande Guerra fizeram dominante o pensamento econômico keynesiano.
No entanto, democracias são regimes de maiorias. Como, então, foi possível, pela via eleitoral, consagrar políticas que, claramente, eram desvantajosas para a enorme maioria da população? É bem verdade que, a avant-première do neoliberalismo, ainda em 1973, foi o Chile do ditador Augusto Pinochet – entusiasticamente assessorado pelo Nobel de Economia Milton Friedman e seus “Chicago Boys” – e que, para os países em desenvolvimento, a adoção da cartilha neoliberal foi imposta pelo FMI. Não obstante tudo isso, é inegável que o neoliberalismo, após 1979, obteve estrondosos sucessos eleitorais em todas as democracias do Ocidente. Como isto foi possível?
A resposta deve partir, primeiro, da compreensão de que a virada neoliberal não representou, simplesmente, a adoção de novas medidas econômicas. Na verdade, significou uma crucial troca de paradigma socioeconômico. Assim como as políticas keynesianas haviam se tornado consensuais no segundo pós-guerra – com Richard Nixon declarando, ainda em 1973: “somos todos keynesianos agora” –, o neoliberalismo, sobretudo a partir dos anos 1990, passou a representar um novo consenso econômico à direita e à esquerda. Exemplo disso é que seus maiores avanços foram obtidos, nos EUA, durante a administração do democrata Bill Clinton, e, na Alemanha, durante o governo do socialdemocrata Gerhard Schröder.
David Harvey, em A História do Neoliberalismo, mostra que o acordo tácito capital/trabalho ruiu com a crise de acumulação dos anos 1970/1980 e identifica o avanço do neoliberalismo como um acirrado conflito distributivo entre patrões e empregados. Ante a nova escassez de recursos era preciso recompor politicamente o poder da classe capitalista, visando promover uma nova distribuição da riqueza, dessa vez em desfavor da classe trabalhadora assalariada. Evidentemente, nenhum projeto político/eleitoral teria sucesso se colocado nesses termos. Harvey nos mostra, então, tomando como exemplo clássico o Partido Republicano, como a pílula amarga do neoliberalismo pôde ser contrabandeada para o grande público nos EUA.
Esse é o momento em que o capital direciona sua enorme gama de recursos para financiar Universidades e Think Tanks, criam-se os mega conglomerados de mídia – tendo Rupert Murdock como representante maior – e o financiamento privado de campanhas eleitorais, candidatos e partidos se torna massivo. A criação de um ambiente político, cultural e ideológico compatível com o pensamento neoliberal era condição sine qua non para a substituição do combalido paradigma keynesiano. Isso explica, em grande parte, a disseminação do ceticismo – por vezes resignado, outras vezes prepotente – na atitude de jornalistas, acadêmicos e políticos frente às mazelas do neoliberalismo. O que Wolfgang Streeck, em Tempo Comprado, descreve com o acrônimo TINA, ou seja, There Is No Alternative.
Nada disso, no entanto, seria suficiente sem a criação de um eleitorado capaz de dar sustentação a esse projeto. Interditado o debate econômico, era preciso falar de outras coisas. Coisas capazes de mobilizar minimamente uma base social e política e de fazê-la, pelo menos, ir às urnas a cada quatro anos. E, é importante ressaltar, que esse é um fenômeno que atinge tanto a direita como a esquerda na sua atuação política.
A direita mergulha no conservadorismo religioso e no nacionalismo chauvinista, justificando os prejuízos da classe média assalariada pela suposta boa vida dos pobres, preguiçosos e irresponsáveis (imigrantes ou não), sustentados pelo erário às custas dos abnegados pagadores de impostos. A esquerda, abandona qualquer pretensão de mudança, e adota como discurso solitário a pauta identitária e a defesa de programas sociais compensatórios aos piores malefícios do neoliberalismo.
A crônica da crise da democracia liberal se faz pela alternância de poder entre facções políticas que, a despeito de diferirem em vários pontos importantes, não atacam a questão principal nesse cenário: a maioria da sociedade está empobrecendo. Grande parte dos cidadãos, hoje, mira o futuro e vê que sua vida está pior que a de seus pais e que a vida de seus filhos não será melhor que a sua. E qual a saída?
A democracia liberal, mais do que qualquer outro regime, depende da crença de que cada cidadão é capaz de influir nas decisões políticas e pode, pela sua participação, agir para melhorar a própria vida. Quando tudo que se consegue é depositar um voto a cada quatro anos e escolher entre opções tidas como essencialmente iguais, o regime democrático está em sério risco. O “que se vayan todos” gritado pelos argentinos durante a crise de 2001 – e sempre repetido, desde então, em protestos ao redor do planeta – representa a profunda descrença numa democracia que não mais representa seus cidadãos.
Manuel Castells, em Ruptura, explica: “se for rompido o vínculo subjetivo entre o que os cidadãos pensam e querem e as ações daqueles a quem elegemos e pagamos, produz-se o que denominamos crise de legitimidade política: a saber, o sentimento majoritário de que os atores do sistema político não nos representam”. E de nada adianta, conforme demonstra a História do século XX, que elites políticas e econômicas pretendam manter as aparências, professando um credo democrático que, de fato, não respeitam; ou procurem domesticar os movimentos antidemocráticos mais radicais para controlá-los em seu próprio benefício.
Sobre os escombros da Primeira Guerra Mundial e turbinados pelo craque da Bolsa de Nova Iorque em 1929, movimentos autoritários, munidos de profundo desprezo à democracia liberal, chegaram ao poder (ou nele se fortaleceram). A despeito de todas as tentativas de instrumentalização, produziram o maior cataclismo da história humana ao custo de milhões de vidas, nos dando a preciosa lição de como é perigoso esse sentimento de desilusão e revolta com o regime político que, no fim das contas, nas palavras imortais de Winston Churchill, campeão da luta contra o nazi-fascismo, é o pior, tirando todos os outros.