Políticas fiscais que reforçam a exclusão racista e por gênero no Brasil

Ilustração: Mihai Cauli

A cor da pele e o sexo estão entre os principais determinantes das desigualdades no Brasil. A população negra e as mulheres representam mais da metade do povo brasileiro, mas esses grupos populacionais estão sobrerrepresentados entre os pobres e os desempregados, especialmente as mulheres negras que sofrem dupla discriminação, a racista e a de gênero. Seus rendimentos são menores e, em geral, estão confinadas a trabalhar em setores da economia de baixa produtividade e informais.

Caberia ao Estado intervir para combater essas desigualdades, mas não é isso que acontece. Ao contrário, os poderes públicos vêm criando regras fiscais para conter os gastos não financeiros da União, e essas medidas penalizam, sobretudo, os empobrecidos, negros, quilombolas, indígenas e mulheres.

O que são regras fiscais

De acordo com as definições existentes nos manuais de economia, as regras fiscais são restrições de longo prazo à política fiscal, que têm como objetivo proporcionar um compromisso confiável com a disciplina fiscal. Estabelecem limites numéricos a agregados orçamentários, como a dívida pública, o déficit e os gastos, entre outros. Essas restrições visam conter o déficit fiscal (1) e evitar o endividamento dos Estados.

As regras fiscais são criadas em nome da chamada responsabilidade fiscal, que corresponde à manutenção do equilíbrio das contas públicas. O equilíbrio pode ser alcançado por meio da redução do déficit primário ou do aumento do superávit primário (2), isto é, não se leva em conta nesta equação os custos de juros da dívida.

Vê-se, pois, que a ideia de responsabilidade ou de saúde das finanças públicas nada tem a ver com o bem-estar da população, mas, sim, com o aumento ou a diminuição da dívida pública (3), considerada um problema, pois, de acordo com a visão dominante, o “rombo” nas contas públicas dificulta o crescimento.

As regras fiscais no Brasil

O Brasil vem se esmerando na aprovação de regras fiscais. Nos últimos 33 anos, um crescente número de medidas de contenção dos gastos vem sendo implementadas.

A primeira delas é a Regra de Ouro, cunhada na Constituição de 1988. Tal regra veda a realização de operações de crédito que excedam o montante das despesas de capital (4), ressalvadas as autorizadas mediante créditos suplementares ou especiais aprovados pelo Poder Legislativo por maioria absoluta. O seu objetivo é o de evitar o endividamento para custear despesas correntes, isto é, gastos com o pessoal, manutenção da máquina pública e com bens e serviços públicos como saúde, educação, segurança pública, cultura, assistência social, emprego e renda, previdência social, entre outros.

A segunda regra foi instituída em 2000 por meio da chamada Lei de Responsabilidade Fiscal. Tal medida visa definir anualmente uma meta para o resultado primário, sempre buscando aumentar o superávit primário ou reduzir o déficit primário. Essa medida é interpretada por especialistas como pró-cíclica, pois ela reduz os gastos governamentais em momentos de crise e os aumenta em momentos de expansão econômica, indo na contramão da ideia do Estado como responsável por responder às crises econômicas e sociais.

Como se não bastasse, em 2016, foi instituída medida draconiana, conhecida como Teto de gastos. Tal mecanismo constitucionalizou, por meio da Emenda n° 95, o congelamento das despesas primárias reais por 20 anos.

Mas a criatividade dos legisladores brasileiros não para por aí. Em 2021, foi aprovada mais uma Emenda Constitucional, a 109, conhecida como PEC Emergencial, que introduziu pelo menos mais três regras fiscais: a) a proibição de concessão de créditos pela União a estados ou municípios, caso as despesas correntes desses entes subnacionais excedam a 95% das receitas correntes e não sejam implementadas medidas de contenção de despesas (sobretudo de pessoal); b) a definição de que lei complementar introduzirá regras dispondo sobre a sustentabilidade da dívida pública e mecanismos de ajuste caso a trajetória da dívida desvie de parâmetro a ser estabelecido; c) a redução de incentivos e benefícios fiscais por parte da União, sinalizando a redução de seu montante a 2% do PIB – atualmente este percentual está em torno de 4%.

A ineficácia das regras fiscais

Nenhum país no mundo tem tanta matéria fiscal na Constituição como no Brasil e elas não estão funcionando.

Regras numerosas e rígidas fazem com que a política fiscal não respondam às necessidades da população. Em momentos de crescimento econômico, a receita pública eleva-se mais fortemente, mas o Teto de gastos impede o aumento das despesas governamentais. Já em períodos de baixo crescimento ou de recessão, quando a expansão dos gastos públicos deveria ajudar a recuperar o nível de atividade, as receitas tendem a crescer menos e o cumprimento da meta de resultado primário depende da redução de gastos ou do aumento da carga tributária.

A promessa dos defensores das regras fiscais é a de que sua aplicação irá resultar em crescimento econômico, pois abre-se espaço à iniciativa privada e extinguem-se gastos ineficazes. O Brasil, mesmo implementando severas medidas de austeridade fiscal, exibiu um crescimento econômico pífio nos últimos anos, bem como um aumento da dívida bruta do governo geral que passou de cerca de 55% do PIB em 2010 para patamares da ordem de 90% em 2020. Adicionalmente, registra-se a presença de déficits primários nas contas públicas desde 2014, com previsão de sucessivos déficits até pelo menos o final da década. Logo, as regras fiscais não estão entregando o que prometem.

A hipocrisia dos governantes

Apesar da sistemática defesa da austeridade, regras fiscais vêm sendo descumpridas em tempos recentes. Por exemplo, a Regra de Ouro não é respeitada desde 2018, na medida em que são emitidos títulos da dívida pública para pagar despesas correntes. A operação é legal porque recebeu o aceite do Congresso Nacional, conforme medida de escape prevista pela própria lei que rege a regra. O mesmo acontece com o Teto de gastos, que “estourou” por conta da aprovação de recursos orçamentários adicionais para conter as consequências da pandemia da Covid-19. Essa também foi uma operação legal, pois em 2020, os gastos foram protegidos pelo Decreto de Calamidade Pública e executados por meio de créditos extraordinários.

Em início de 2021, durante o ápice da mortalidade pelo Sars-CoV-2, o governo voltou com o discurso da austeridade fiscal e não reservou verbas adicionais para a pandemia no orçamento, insistindo na necessidade de conter o chamado descontrole das despesas públicas. Evidentemente que esse discurso não se sustentou diante das graves consequências das crises econômica, social e sanitária, e a emissão de dívida para financiar gastos com o enfrentamento da pandemia foi novamente acionada. Contudo, o governo condicionou essa medida à aprovação de novas regras fiscais contidas na EC 109, conforme destacado anteriormente, insistindo no erro da inoperância dessas medidas em tempos de crise.

Regras sexistas e racistas

A implementação das regras fiscais associada à falta de planejamento em relação ao uso de recursos da dívida pública para financiar a União não só desorganizam a máquina federal como provocam exclusão social.

As medidas de austeridade resultaram no desmonte de instituições e políticas públicas. É bem conhecido o crescimento das filas para marcação de consultas no SUS e o fechamento de entidades de assistência social. Recentemente vimos os adiamentos do Enem e do Censo do IBGE. Também presenciamos o apagão da Plataforma Lattes. Sem mencionar a desestruturação das medidas de fiscalização na área ambiental que contribuíram com o aumento desenfreado do desmatamento.

Por seu turno, a aprovação de verbas adicionais por solavancos, como foi o caso na pandemia, impede a projeção a médio e longo prazos de ações mais sustentáveis. Esse é o caso do Ministério da Saúde, que não consegue implementar adequadamente o plano de imunização contra a Covid-19, nem construir a transição para o pós-Covid, no sentido de dar repostas às demandas que ficaram represadas durante a pandemia. Também foi o caso das medidas de proteção ao emprego e à renda, que além de terem sido mal desenhadas sofreram descontinuidades resultando em desperdício de recursos. O Auxílio Emergencial não foge à regra, as sucessivas variações dos valores dos benefícios associadas à interrupção do programa por três meses no começo de 2021 impossibilitaram o desenho e a implementação de iniciativa que combatesse de forma responsável a fome e a miséria.

As regras fiscais e suas recorrentes excepcionalidades realizadas sem qualquer planejamento têm como corolário o aprofundamento das desigualdades, especialmente as de renda, gênero e raça/etnia. Com efeito, os arrochos fiscais recaem, sobretudo, sobre os empobrecidos uma vez que resultam em diminuição de valores de benefícios e de número de beneficiários e da qualidade dos serviços públicos prestados. E também, porque não são acompanhados de um plano de investimentos públicos que possam assegurar a retomada do crescimento.

O Inesc tem mostrado em distintos estudos (5) que os orçamentos federais destinados aos povos indígenas, quilombolas, população negra e mulheres têm diminuído nos últimos anos. O mesmo acontece para a saúde e a educação públicas, sendo que os maiores usuários dessas políticas são empobrecidos e negros.

Neste contexto, urge o fim do Teto de gastos e a revisão das demais regras fiscais e dos sentidos do uso da dívida pública para uma retomada democrática, inclusiva e sustentada. Mais do que nunca, urge a volta da função planejamento tão necessária para acordar coletivamente os rumos da Nação. (Original publicado em Outras Palavras, 17/08/2021).

Notas: (1) O déficit fiscal é normalmente utilizado com o mesmo sentido do déficit primário (ver nota (2) Superávit primário é o resultado positivo de todas as receitas e despesas do governo, excetuando gastos com pagamento de juros da dívida. O déficit primário ocorre quando esse resultado é negativo. Ambos constituem o “resultado primário”. (3) Quando os impostos e demais receitas não são suficientes para cobrir as despesas, o governo é financiado por seus credores (pessoas físicas, empresas e bancos), dando origem à dívida pública. (4) Despesas relacionadas com aquisição de máquinas equipamentos, realização de obras, aquisição de participações acionárias de empresas, aquisição de imóveis, concessão de empréstimos para investimento. (5) A esse respeito ver: Gastos do governo com pandemia caem de R$ 218 bi para R$ 49 bi no primeiro semestre

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Relacionado ao tema, leia também o artigo “Mulheres e o teto de vidro” por Barbara Cobo.