Goya, a guerra da Ucrânia e as imagens que ninguém mostra
Às vezes me encantam os números. Soam ilustrativos. É muito fácil saber, por exemplo, que a distância de Berlim até Kiev, a atual protégé de Whashington e queridinha dos chefes europeus, é de 1.383 km. De Paris, são 2.433 km, e partindo de Bruxelas, sede da Aliança Armada do Atlântico Norte, 2.104 km. O Google Maps estima em pouco mais de 16 horas o tempo necessário para percorrer de carro a primeira distância, 25 horas para o segundo trajeto e 23 horas e 17 minutos para o terceiro. Nada que dois motoristas jovens e experimentados não possam fazer com tranquilidade da manhã ao entardecer de um dia de outono.
Mas as distâncias, indicadas pelos números, podem também nos soar abstratas. Quem sabe não se tornem mais assimiláveis se as associamos àquelas como a percorrida pelo cineasta Werner Herzog que, ao receber a notícia da doença que acometia sua amiga, a escritora e crítica de cinema Lotte Eisner – ele caminhou de Munique a Paris, durante o inverno, para visitá-la. Ou, simplesmente, para encontrar uma pessoa amada, acampar numa praia longínqua na adolescência, presenciar e celebrar a posse de um presidente eleito e querido pelo povo. Muitos de nós guardamos carinhosamente na memória o trajeto do Rio a Brasília, por exemplo (1.167 km, pouco menos que os 1.383 km que separam Berlim de Kiev). Eu, em particular, nunca vou me esquecer da primeira viagem que fiz pouco antes de entrar para a Universidade, num trajeto de 2.207 km, da cidade onde nasci até Belém (exatos 103 km menos que a distância que separa a sede da OTAN da capital ucraniana). Quem sabe assim possamos imaginar melhor como seria se, hoje mesmo, uma guerra de dimensões consideráveis estivesse acontecendo bem ali, no Pará, no Rio de Janeiro, no planalto central ou qualquer outro pedaço do Brasil (como sabemos, territorialmente, o Brasil é pouca coisa menor que a Europa – algo como uns 19%). Suponho que nos seria difícil ignorar.
E não é que aqui, na Espanha, França, Alemanha se ignore a guerra que há exatos 19 meses está tirando a vida de dezenas de milhares de pessoas (soldados, pelo menos até segunda ordem, também pertencem à categoria dos seres vivos e à espécie humana, ainda que às vezes possa não parecer). Ao contrário, fala-se da guerra quase todo santo dia. Falam, noticiam e até recentemente o faziam à exaustão. Falam e é como se não o fizessem. Noticiam para não mostrar. Talvez por isso, aqui e ali, em Berlim e Paris, assim como nas outras majestosas metrópoles da velha Europa, a vida segue na mais absoluta normalidade, ávida de consumo, divertimento, navios de cruzeiros, festivais de cinema, amenidades, pequenos escândalos e polêmicas mais ou menos obscenas, longe dos horrores da guerra. Porque as imagens que chegam dessa guerra não mostram seus horrores, os corpos feitos pedaços, os cadáveres esparramados pelo chão, atacados por enxames de insetos voadores. É quase como se fosse uma guerra apenas de drones, drones e bombas que não produzem cadáveres. Só edifícios desmoronados, ruas e avenidas cheias de entulhos. E meia dúzia de corpos inertes numa esquina em meio aos destroços.
E, de novo, os números. Porque os cadáveres que a guerra está produzindo desde fevereiro de 2022 e não nos são mostrados são aos milhares, às dezenas de milhares. Durante os oito anos da participação direta dos Estados Unidos na guerra do Vietnã (1965-1973) morreram 55 mil soldados norte-americanos e pelo menos um milhão e cem mil vietnamitas. As informações disponíveis sobre esses 18 meses de guerra na Ucrânia (ou da guerra da Rússia contra a OTAN na Ucrânia) fala-se, vez ou outra, de aproximadamente 500 mil mortos.
Mas os números não são suficientes. As imagens, mais que os números, essas sim são absolutamente necessárias para nos provocar repulsa e nojo, fazer revirar nossos estômagos tão sensíveis e fazer com que a revolta atinja a consciência. Para que tenhamos consciência do horror, para isso nos serviriam as imagens. Por isso Goya fez suas gravuras sobre a guerra. E por essa razão elas são até nossos dias, mais de dois séculos depois, uma baioneta para cutucar nossa consciência. E também por isso, aqueles que deveriam nos mostrar os horrores dessa guerra que agora mesmo e há quase dois anos envergonha, mais uma vez, o chão da Europa, não o estão fazendo.
Não há uma só imagem da atual guerra na Ucrânia que tenha sido publicada que não tenha sido cuidadosamente escolhida pelos comandantes das forças armadas em conflito ou seus comitês de imprensa. E nenhuma delas pode sequer se aproximar daquelas singelas oitenta gravuras publicadas em meados do século XIX sob o título de Desastres da Guerra – executada entre 1810 e 1815, a série tinha como título Fatales consequencias de la sangrenta guerra de España com Buonaparte y otros caprichos enfáticos. Ou a fotografia da garota vietnamita chamada Kim Puc, de apenas nove anos de idade, com o corpo queimando pelo napalm lançado pelos norte-americanos. Tirada em junho de 1972 pelo fotógrafo da AP Nick Ut, a imagem foi talvez a gota d’água que faltava para fazer transbordar a rebelião contra a guerra e forçar a retirada das FFAA americanas do conflito. Não foi a única. Os incontáveis fotógrafos que registraram a guerra do Vietnã foram generosos na produção das imagens do horror. O horror… o horror. O para sempre inesquecível horror expresso pela voz do coronel Kurtz de Marlon Brandon. Há uma biblioteca de fotografias contando a história daquela guerra. E inegavelmente aquelas imagens contribuíram para que ela não se prolongasse e os mortos não fossem muitos mais.
É verdade que nem sempre a imagem do horror impede que ele prossiga e muito menos se repita. Na produção do mal, a humanidade é incansável, persistente, ainda mais quando há poderosos interesses econômicos em jogo. E sempre há.
Mas aqui, é de um plus que estamos falando. Nem é da violência e do horror que obviamente está tirando a vida de milhares de pessoas na Ucrânia. É da censura. E da censura na sua forma mais vil. Da censura que não se anuncia. Da censura camuflada como um tanque de guerra ou um lança chamas invadindo uma cidade. A censura praticada pelos grandes meios de comunicação que se anunciam como imprensa livre, do mundo livre e democrático, e que trata aqueles que necessitam de informação como ineptos, meio cidadãos incapazes de decidir o que ver e ler. A ação obscena dos que têm o dever de informar contra aqueles que deveriam ser informados.
Um descuido e a máscara cai
Não é preciso ser um brilhante analista e visionário para saber que as consequências dessa atitude são absolutamente funestas. Os senhores da informação se subordinaram aos ditames dos senhores da guerra quando compraram as mentiras do bando de Bush para invadir o Iraque e agora, passado não muito tempo, publicam servilmente os press releases do comando de uma organização militar para agudizar tensões e provocar e seguir com uma guerra de todo evitável. E nós, calados, aceitamos…
Quem sabe, acomodados com as facilidades dessa manipulação das informações em grande escala e a total ausência de resistência por parte do grande público, relaxados, chegam a levar ao palco peças de um amadorismo canhestro. Uma dessas pecinhas de colégio aconteceu sexta-feira passada, 22 de setembro, na sede do parlamento canadense. Para uma dessas inúmeras recepções celebratórias do novo herói do Ocidente, o presidente ucraniano, foi convidado também outro ucraniano, um senhorzinho de 98 anos chamado Yaroslav Hunka. A razão de tal convite era que o simpático nonagenário havia combatido os exércitos russos durante a II Guerra. Ovacionado de pé pelos presentes duas vezes seguidas, pelo compatriota Zelensky incluso, o sr. Hunka agradecia comovido enquanto as câmeras de TV capturavam as faces agradecidas dos que aplaudiam o bravo combatente anti-russo.
O escorregão da máquina de propaganda logo se fez saber e como um rastilho de pólvora foi se espalhando por quase, repito, quase, mas não todas as redações dos grandes jornais do planeta. Aqui na Espanha, dos grandes jornais só o La Vanguardia repercutiu, quatro dias depois, quando todo mundo já havia dado. No El País até agora não vi nada. A verdade era que Yaroslav Hunka é um militar ucraniano aposentado que lutou durante a Segunda Guerra Mundial nas fileiras da 14ª Divisão de Granadeiros SS (informalmente conhecida como Divisão Galiziana). Nasceu em Urmán, na Polônia e, em 1943, se ofereceu voluntariamente para lutar na Waffen-SS. A isso chegamos.
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Ilustração: Mihai Cauli Revisão: Celia Bartone
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