Os cenários do futuro não são dados, a menos que se decida não interferir na sua construção.
Na breve história do homem em comunidades agrícolas, vilas e cidades – 10 mil em 4,5 bilhões de anos da Terra –, os impasses e desafios da vida comum e coletiva foram resolvidos, por longuíssimo período, por meio da força, invasões, guerras e opressão sistemática dos mais fracos pelos mais fortes (Harari 2020). Nos últimos setenta anos, sob uma perspectiva bastante benevolente com a história, a brutalidade na solução dos dilemas e conflitos foram cedendo mais espaço à política e diplomacia, na busca de consensos e pactuação de compromissos chamados – não por acaso – de civilizatórios. Foi longa a transição da barbárie, do império da força, da lei dos mais fortes e da supremacia da competição à construção de consensos republicanos, valorização da dignidade humana, solidariedade e cooperação, bases de edificação do Estado Democrático e do Estado de Bem-Estar Social ao longo do século XX. Políticas públicas mais abrangentes vieram a se estruturar ao longo desse período para atender as demandas de maior justiça social e convívio societal em contextos urbanos cada vez mais adensados e complexos. Não fossem os sistemas abrangentes de políticas públicas e esses valores – amalgamados na Carta Universal dos Direitos Humanos de 1948 – sobrepondo-se às tradições seculares de naturalização da força, do mérito de nascença, da desigualdade, da liberdade sem respeito a princípios de convivência, o mundo não teria chegado aos dias de hoje (Jannuzzi 2024). E talvez não passe do Século XXI se não continuarem a prevalecer.
O progresso técnico e tecnológico contribuiu muito nesse processo civilizatório, de modo um tanto ambíguo, pela ampliação das possibilidades de maior bem-estar e convívio humano, de um lado, e pela aplicação das inovações no desenvolvimento de artefatos de guerra, de outro. Se a invenção da roda foi uma inovação técnica marcante na história, por viabilizar o arado e colheitas mais rápidas no campo, por permitir o transporte mais eficiente de mercadorias e pessoas, e daí, viabilizar maior interação e comércio entre as sociedades, também permitiu a construção de equipamentos de guerra mais velozes e letais. Se os instrumentos de navegação aprimorados pelos árabes e chineses na Idade Média ampliaram os horizontes do transporte intercontinental de mercadorias pelos mares então desconhecidos até o século XV, também viabilizaram, pouco tempo depois, a expropriação colonial das Américas, da África e de todo o mundo pelas nações europeias. Caminhos e descaminhos semelhantes tiveram o motor a vapor, a eletricidade, o avião, a energia atômica, a microeletrônica, a internet e tantos outros exemplos (Fourez, 2003; Marcuse 2009). Nos últimos duzentos anos, entre usos, abusos e maus usos, o progresso técnico viabilizado, em larga medida, pelo financiamento coletivo ou estatal (Mazzucato, 2020), tem legado enorme capacidade de diagnóstico de doenças, de tratamento e produção de novos medicamentos; inovações no plantio e produção de alimentos para redução efetiva da fome em muitos países; soluções massivas para conforto domiciliar, transporte coletivo e comunicação. No século XXI, a Inteligência Artificial (IA) é a inovação tecnológica da vez, e talvez, do sempre, a julgar pela especulação sobre seus impactos apocalípticos ou idílicos sobre a sociedade humana, economia e meio ambiente (Lee 2019, Jannuzzi et al 2023).
Se a emergência, ampliação e consolidação das políticas públicas foram determinantes para a universalização do direito ao bem-estar em boa parte dos países desenvolvidos, sobretudo naqueles que lograram constituir modelos inclusivos de Bem-Estar, e se as inovações tecnológicas possibilitaram garantir de forma crescente a base material de recursos para usufruto do bem-estar no passado, parece fazer sentido esperar que esses vetores continuem influenciando o curso das vidas humanas no futuro, no Brasil ou em qualquer outra parte do mundo. Especular sobre cenários futuros para o Brasil à luz desses dois vetores de transformação– continuidade ou não do processo civilizatório viabilizado pela estruturação de sistemas de políticas públicas e o emprego construtivo ou destrutivo das inovações tecnológicas agora galvanizadas pela IA – é o objetivo desse ensaio.
É bem verdade que os possíveis cenários futuros do Brasil e do mundo dependem de outras múltiplas determinações de natureza geopolítica, econômica, ambiental, demográfica, sociopolítica como as discutidas, entre outros, por Frase (2016), Blyth (2017), Pochmann (2022), Han (2022), Castro (2023), Cepik e Brancher (2023), Holz et al (2023) e Tavares (2024). Esses autores relacionam uma série de vetores de transformação, tendências de longa data, regularidades cíclicas da história, incertezas críticas e possibilidades disruptivas latentes que tornarão o futuro imediato ainda mais instável e, por isso, potencialmente mais perigoso de se viver. De forma mais intensa ou vagarosa, tem-se assistido e se vivenciado nos seis continentes do mundo, entre as principais tendências arroladas: a) o questionamento dos valores intrínsecos da democracia e da legitimidade da promoção do bem-estar social pelo ressurgimento da extrema direita; b) a continuidade da ampliação das desigualdades salariais desde os anos 1970 em boa parte do mundo desenvolvido; c) a potencialização acumulativa do binômio (ou monômio?) financeirização-datatificação do capitalismo contemporâneo; d) o surgimento de inovações tecnológicas disruptivas potencialmente destruidoras de metade das ocupações hoje existentes; e) o agravamento das disputas geopolíticas em diversas regiões, microrregiões e segmentos étnicos-religiosos-populacionais pelo globo; f) os efeitos da contaminação ambiental, a intensificação das mudanças climáticas e seus impactos na produção agrícola e vida nas cidades; g) o aumento mais acelerado da população idosa e da longevidade.
Cenários inimagináveis há algumas décadas, de volta ao Estado da Natureza, à Barbárie, é uma plausibilidade. Cenários de populismo-negacionista ou liberal-ambientalista já são casos concretos materializando-se pelo mundo. É uma triste constatação que fake news veiculadas sistematicamente na Internet acabam adquirindo status de informação confiável por segmentos da população (Empoli, 2019). A oligopolização das mídias sociais tem se prestado a uma quase monopolização das opiniões mais obscuras, sem fundamentos de um senso comum de caráter perverso. Esse processo tem intensificado a radicalização da sociedade à extrema direita do espectro político, ou melhor, tem acelerado a guinada reacionária-conservadora no país e no mundo, com consequências na deslegitimação do pacto de consensos civilizatórios que imaginávamos plenamente consolidados (Fisher 2023, Gorgen 2024). A Desinformação Algorítmica tem corroído as bases de coesão social, de tolerância à diversidade e diferenças e de convívio colaborativo e respeito dentro das empresas e das organizações públicas (Jannuzzi et al 2024). Se servir de consolo, em um lampejo de esperança, Frase (2016) acha possível até mesmo um cenário de derrocada final do capitalismo e de constituição do Estado Comunal – ‘socialista-democrático-ambientalista’.
Nesse ensaio, esses vetores portadores de futuro são sintetizados, mediante muita rendição à complexidade intrínseca dos mesmos – como é típico em exercícios de cenarização (Gonçalves et al 2014) – em dois eixos ortogonais agregadores: o sentido e ritmo da Datatificação da economia e sociedade; e a resiliência ou abandono do Projeto Civilizatório que nos trouxe até aqui (Figura 1). Assim, de um lado, vaticinando os cenários mais distópicos descritos na literatura, a continuidade da ordem neoliberal em sua vertente ainda mais radical, sem preocupação ambiental, sem regulação da IA e mídias sociais provocaria uma forte perda de empregos, aumento da desigualdade e da polarização política. De outro, nos cenários utópicos, a contenção da ordem neoliberal e da devastação ambiental, a melhoria da distribuição da renda e dos ganhos de produtividade com a robotização, o fortalecimento das pesquisas e uso ético das inovações em IA levariam à descoberta de curas de doenças, resolução de problemas sociais seculares e aumento do tempo de lazer, sem perdas salariais. De um jeito ou outro; as Políticas Públicas seriam impactadas e requeridas com desenhos e naturezas diferentes, conforme a escolha que a sociedade brasileira e mundial fizer: em um sentido, proteção social mínima apoiada em programas mitigatórios da fome e da pobreza, no caso de concretização do pior cenário descrito acima; ou, em outra direção, um sistema abrangente de políticas na construção de uma sociedade mais justa e desenvolvida para todos os cidadãos.
Pelos efeitos das macro-determinações que pouco o país pode, sozinho, resistir ou influenciar (uso responsável e construtivo, ou não, da IA, por exemplo) e das escolhas ainda possíveis que a sociedade brasileira pode fazer – fortalecimento (ou não) das políticas públicas nos próximos anos – pode-se vaticinar três cenários possíveis, plasmados em filmes com certa repercussão nos últimos cinquenta anos: o cenário futuro pouco alentador da Los Angeles distópica do filme Blade Runner; outro, completamente antagônico, o cenário idílico do vale místico de Xangrilá, retratado no “clássico” Horizonte Perdido nos anos 1970; por fim, entre essas duas referências metafóricas, está o cenário Bacurau, referido à situação vivenciada na cidade de filme homônimo lançado durante a pandemia, localidade perdida no Brasil profundo, com disputas permanentes entre a população e as elites sabotadoras. Esse último cenário, Bacurau, é o Brasil dos últimos 10 anos projetado para 2050, com IA não regulada, refém das fakes news que minam a legitimidade e efetividade da ação estatal, com sistema de políticas públicas incompleto, subfinanciado por uma carga fiscal de 33% do Produto Interno Bruto (STN 2024).
O cenário “Brasil-Los Angeles-Distópica-2050” seria o do Brasil do império da força, dos mais fortes, da competição e égide do mérito individual, dos empreendedores resilientes e estóicos – qualquer que seja o volume do capital disponível, do veículo uberizado ao grande capital, da liberdade de expressão e veiculação midiática sem limites nas redes, de não-cidadãos, mas de consumidores com celular. Nesse futuro, as políticas públicas foram voucherizadas, para que cada família compre serviços de educação, saúde, assistência social no mercado, como proposto pelos ultraliberais do governo passado, ainda muito presentes e circulantes na mídia corporativa e ambiente político no país. Para tal Brasil, mais próximo do México e da América Central, em boa medida submerso pelo degelo acelerado do Ártico e Groelândia e devastado pelos eventos climáticos extremos, bastaria uma carga fiscal abaixo de 20%. Afinal, esse Estado Mínimo, menos empoderado que o Estado Burocrático do século XIX, não precisa de muito mais para garantir os serviços de segurança (no caso, privados, com autorização, da força extrema, como no filme de referência apontado), para manter as Forças Armadas (afinal, as guerras de conquistas de mercados ressurgirão) e para assegurar alguma administração de justiça (afinal, as elites sempre precisam conferir alguma legitimidade ao seu poder, já que o “poder divino” não pode mais ser arrolado como bem descreve Souza (2024)).
O cenário “Brasil-Xangrilá-2050” seria o de um país mais solidário, tolerante e justo, com políticas públicas financiadas adequadamente, com carga fiscal acima de 42%, patamar mínimo para garantia de cidadania social em um país europeu, como Portugal (Jannuzzi 2024). Nesse cenário “Brasil-2050-como-Portugal-Hoje”, a financeirização econômica e a plataformização do mercado de trabalho estariam mais contidas, assim como a regras de funcionamento das mídias sociais e a aplicação da IA. Os efeitos das mudanças climáticas em curso estariam sendo mitigados por ações estruturadas do governo e por forte ativismo diplomático em favor do meio ambiente. Nesse contexto, a produção de evidências, dados e estudos seria fortemente incentivada para aprimoramento das políticas públicas, de modo a ampliar seus efeitos e sustentar a legitimidade das mesmas junto à sociedade.
Esse exercício prospectivo é certamente limitado e modesto, mas necessário de ser realizado em bases mais regulares e amplas. Fato é que a elaboração de cenários já desfrutou de maior regularidade e prestígio. As técnicas de delineamento de Cenários Futuros desenvolveram-se de forma significativa no século XX, como consequência da necessidade de antecipar-se e preparar-se para complexidade e incertezas crescentes do mundo contemporâneo, tendo se legitimado pelo relativo sucesso até os anos 1980. Eram aplicadas em contextos de incertezas baixa ou média, em que é possível mapear principais tendências e antecipar eventos futuros dentro de certa margem de ocorrência (Courtney 2004).
A dificuldade de exercícios prospectivos na atualidade é que a conjuntura do presente e as perspectivas para as próximas décadas para o Brasil e Mundo parecem fugir à certa regularidade e previsibilidade que as técnicas convencionais pressupõem. Vive-se um contexto de grande ambiguidade de perspectivas futuras, em que técnicas estruturadas de construção de cenários podem produzir resultados que venham a ser superados e invalidados no médio prazo. Mas é exatamente nesses contextos de incerteza e indeterminação que os exercícios prospectivos são mais necessários, ao apontar caminhos, portas e saídas que se pode escolher ir ou evitar.
Por limitados que sejam, cenários prospectivos ajudam a refletir sobre as consequências de decisões, omissões e não-decisões no presente e no cotidiano. Deixar-se levar pelas contingências da vida e decisões de outros é uma escolha possível; preparar-se para possíveis contingências dá alguma possibilidade de tentar caminhos alternativos. O futuro não é dado, a menos que se decida não interferir na sua construção. Ainda dá tempo para, como Portugal fez nos últimos quarenta anos, pavimentar o caminho para um país mais próximo de Xangrilá!!
Bibliografia citada:
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CASTRO A. C. Capacidades e capacitações estatais para uma agenda de futuros. Revista Do Serviço Público, 74(1), 42 – 62, 2023.
CEPIK, M.; BRANCHER, P.T.L. Futuros digitais e poder global: dinâmicas, desigualdades e governança. In: Aaron Scheider (org) Soberania popular na era digital. São Paulo: Hucitec/Persu Abramo, 2023, p.175-191.
COURTNEY, H. Previsão 20/20: a construção de estratégias num mundo de incertezas. São Paulo: Cultrix, 2004.
EMPOLI, G. Os engenheiros do caos. 3. ed. São Paulo: Vestígio, 2019.
FOUREZ, G. A construção das Ciências. São Paulo: Ed Unesp, 1995.
FRASE, P. Four futures.: life after capitalism. London: Verso, 2016.
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HAN, B.C. Infocracia: digitalização e crise da democracia. Petrópolis: Vozes, 2022.
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HOLZ, R.; JACAS, C.; ROBLES, C. El futuro de la protección social: desafios frente a uma renovada estrutura de riegos. ROBLES,C. HOLZ,R. (org) El futuro de la protección social ante la crisis social prolongada em America Latina. Santiago: Cepal, 2023, p. 21-42.
JANNUZZI, P. M.; FERREIRA, V. R. S.; REIS, F. T. Chat GPT, inteligência para o bem? Terapia Política, Rio de Janeiro, p. 1-5, 5 maio 2023.
JANNUZZI, P.M. Políticas Públicas, Valores e Evidências em tempos de Inteligência Artificial. Campinas: Alínea, 2024.
JANNUZZI, P.M. Informação algorítmica e políticas públicas: A contribuição dos modelos de Inteligência Artificial Generativa. RBEST: Revista Brasileira de Economia Social e do Trabalho, Campinas, v. 6, e024017, 2024.
LEE, K. Inteligência Artificial: como os robôs estrão mudando o mundo, a forma como amamos, nos comunicamos e vivemos. Rio de Janeiro: Globo, 2019.
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MAZZUCATO, M. O Estado Empreendedor: desmascarando o mito do setor público vs. Setor privado. São Paulo: Schwartz, 2020.
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SOUSA, J. Brasil dos Humilhados: uma denúncia da ideologia elitista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2024.
TAVARES, R. Esquerda e Direita: guia histórico para o século XXI. São Paulo: Tinta da China, 2024.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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