A diáspora brasileira no tempo da ditadura merece um estudo mais aprofundado. O que este artigo pretende apenas é dar um testemunho pessoal da luta pela anistia assumida pelos exilados, sobretudo na Europa, Estados Unidos e Canadá, concebida em apoio ao movimento no Brasil.

O meu “lugar de fala” é justificado pelo papel que assumi no exílio, tanto nas denúncias de repressão, torturas e assassinatos de presos políticos como na criação dos Comitês Brasileiros pela Anistia (CBA). Atuei como coordenador do primeiro CBA no exterior, em Paris e, em 1978/1979, como coordenador do conjunto dos CBAs na organização do último e maior evento da diáspora, a Conferência Internacional Pela Anistia e Liberdades Democráticas no Brasil.

Primeiros movimentos: a denúncia das torturas e assassinatos de presos políticos no Brasil

Quando o grupo de 70 presos, trocados pelo embaixador suíço, chegou ao Chile em janeiro de 1971, este país já era o maior centro de convergência dos que tiveram que se exilar para evitar prisões ou coisas muito piores. Menos de quatro anos depois, no momento do golpe que derrubou o presidente Allende, estima-se que o número de brasileiros no Chile estava próximo dos mil, representando provavelmente dois terços do total espalhado mundo afora.

Ao que eu saiba, não havia uma organização política de brasileiros exilados no Chile voltados para campanhas sobre o Brasil. O que existia era a “Caixinha”, uma organização de solidariedade com os recém-chegados ao país, visando dar condições de alojamento, alimentação e emprego aos necessitados. A Caixinha foi organizada por um grupo formado pelos mais antigos no exílio, encabeçado por José Serra e tinha como princípio o apoio a todos, sem privilégios nem distinção por partido político. Com o tempo, foi agregando na coordenação alguns dos novos exilados, vindos de todas as correntes políticas. Por não conhecer detalhes desta entidade, não vou citar nomes dos seus muitos ativistas, mas não se pode esquecer do papel essencial no apoio a quem chegava, muitas vezes com uma mão à frente e outra atrás.

Naquele momento do exílio, havia apenas um grupo político divulgando denúncias contra a ditadura. Centrado em Paris e intitulado Frente Brasileira de Informações (FBI), tinha à frente o ex-deputado Márcio Moreira Alves e agregava algumas organizações da esquerda brasileira: VPR, ALN e outras que não lembro, mas creio que todas ligadas à luta armada contra o regime. Acho que o PCB, que tinha uma representação em Paris, não fazia parte. A AP – partido ao qual eu era filiado – esteve um tempo na FBI, mas quando cheguei ao Chile, tinham rompido e nunca soube por que razão. A FBI distribuía um boletim informativo com denúncias do regime e divulgava ações revolucionárias da esquerda.

O grupo dos 70, no dia seguinte da nossa chegada, convocou uma conferência internacional de imprensa, realizada no local do nosso alojamento, Hogar Pedro Aguirre Cerda. Os dirigentes políticos das organizações da luta armada que tinham saído neste sequestro formaram uma coordenação política, com a participação da VPR, ALN, PCBR, MR-8 e VAR-Palmares e este grupo me convidou para dirigir o encontro com os jornalistas, na minha qualidade de presidente da UNE. As organizações da luta armada não me chamaram para esta coordenação, pelo fato de a AP não ter aderido a esta forma de luta naquele momento, mas acharam que uma liderança de massas era importante na hora de se comunicar com o público. Entre parênteses, esta ambiguidade daria uma boa discussão sobre o papel da luta armada e da luta de massas na revolução.

Aceitei o papel e fiquei um tanto preocupado pelo fato de que a coordenação não me deu qualquer orientação para o debate com a imprensa. Por minha própria conta, decidi centrar minha exposição inicial na denúncia da ditadura, em particular no tema da tortura e assassinatos dos presos políticos, o que justificava o sequestro como forma extrema de salvar vidas de militantes. Ninguém da coordenação criticou minha escolha e, em uma declaração de acordo e confiança, me propuseram representar essa “frente armada” em uma campanha internacional com esse mesmo conteúdo que fiz na conferência de imprensa.

Eu já tinha decidido dedicar um tempo a uma campanha internacional de denúncia da ditadura, aproveitando o fato de que tenho passaporte suíço e falo inglês e francês, mas pretendia fazê-la vinculada à AP. A “frente armada” não viu problemas nesta associação com a AP, embora, obviamente, a campanha tivesse uma imagem mais próxima da AP, dada a minha filiação e papel mais destacado nesta atividade.

Em 1971, essa “frente única” de denúncias funcionou em parte. Como um (meio) suíço em um país muito conservador como era a Suíça, eu me apresentei como presidente da UNE. Não me coloquei como “representante dos 70” ou como militante da AP, porque o sequestro do embaixador suíço pela VPR, poderia causar a perda do apoio e da solidariedade de grupos humanitários, essenciais para isolar a ditadura.

Já na Itália, falar em nome dos 70 não causava reações, mesmo sendo fortemente politizada e com organizações mais à esquerda como Lotta Continua, Avanguardia Operaia, Potere Operaio e mais convencionais como o PCI e o PSI, todos com bases importantes no proletariado, estudantado e, em menor grau, no campesinato, além da forte base parlamentar dos dois últimos. Mesmo entidades menos “políticas”, como a Comissão de Direitos Humanos do Vaticano me receberam para escutar minhas denúncias contra a ditadura.

Nesta longa campanha de quase dois meses, convidei dois companheiros dos 70 para participarem comigo dos eventos: René de Carvalho, do PCBR e Roberto Fortini, da VPR. Estivemos em mais de 15 grandes cidades, entre elas Roma, Milão, Turim, Florença, Bolonha e Veneza. E em outras menores, como Sassari e Cagliari, na Sardenha, Varese, Parma, Verona e várias outras. Acho que foi a campanha com maior impacto de massa da qual participei.

Quando chegávamos às cidades, um ou mais interlocutores políticos nos recebiam e, com frequência, eram tantos os eventos, que nos dividíamos para atender a todos os compromissos. Vou contar sobre um deles, em Milão, para dar uma ideia do clima.

Convidado pela organização da esquerda “extra-parlamentar”, Avanguardia Operaia, mas com o apoio de uma dezena de outras organizações, inclusive da Democracia Cristã (a Itália era um espaço político muito singular!), fui falar para os operários da fábrica Pirelli no final do expediente e me deparei com uma enorme assembleia com mais de mil pessoas. Àquela altura da campanha, eu já falava italiano correntemente e fiz o discurso e o debate sem tradutores. Muitas perguntas foram feitas sobre as condições da classe operária no Brasil e sobre os sindicatos e a luta revolucionária contra a ditadura. No final de evento, o delegado sindical vinculado ao partido Democrata Cristão (de direita e no governo desde o final da segunda guerra mundial) propôs uma coleta de fundos “para financiar a compra de armas às organizações revolucionárias brasileiras”. Foi vaiado pela massa, o que me confundiu um tanto, mas a razão foi a falta de coerência do sujeito, que se fazia de revolucionário… no Brasil. Outros apoiaram a moção, mas deixando que os brasileiros decidissem sobre o uso a dar a estes fundos. Levantou-se uma boa grana na coleta, talvez porque estivessem muito preocupados com a perspectiva de transferência das fábricas da Pirelli para o Brasil.

Depois do debate, as lideranças sindicais me convidaram para um jantar no bairro proletário onde viviam, o Sexto San Giovanni, aceitei encantado. Chegamos a uma ruela no bairro onde havia já dezenas de mesas lado a lado, com as mammas e nonnas colocando pratos e travessas de comida, acompanhadas por muitas garrafas de vinho. Foi muito agradável e delicioso, sem papo político sério. Ao final, eles puseram-se a cantar canções revolucionárias, anarquistas, comunistas, socialistas e até cristãs. Era uma grande frente única solidária e todos entoavam em coro as canções.

Depois de ouvir várias músicas vibrantes e beber muitos brindes aos povos italiano e brasileiro, meu mais próximo contato naquele mundo pediu silêncio e me convocou: “canta una música revolucionária brasiliana”. Embatuquei. Não sabia direito a Internacional em português e claro, o hino nacional não cabia ali. Pensei no “Subdesenvolvido”, mas também não me pareceu adequado. Acabei cantando “Caminhando e cantando” do Vandré, me esgoelando com a minha vozinha rouca. Terminei com um silêncio decepcionado à minha volta e alguém comentou bem alto: “se depender da música, a revolução brasileira não vai longe”. Tive presença de espírito ao responder: “se dependesse da música, vocês já teriam feito a revolução”. Fui ovacionado.

As campanhas se sucederam ao longo do ano de 1971, 1972 e 1973, passando pela França, Alemanha, Bélgica, Holanda, Dinamarca, Suécia, Inglaterra, Escócia, Irlanda e Canadá e Estados Unidos. Na primeira, ainda compartilhei com o René, mas no resto foi um voo solo, com eventuais parcerias com exilados que lá moravam, alguns ligados ao MR-8, VPR, ALN e, na maioria dos casos, à AP, é claro. Mas não havia organizações de exilados estruturadas em frentes nestes países.

Em 1972, acabei me concentrando no caso do líder camponês da AP, Manoel da Conceição, preso em janeiro no interior do Maranhão e desaparecido por quase todo aquele ano. Rodei por vários dos países citados, tendo como alvo declarações de “gente de peso”, de qualquer setor da sociedade, de preferência de centro e até de direita, pois a ditadura não se incomodaria com protestos de esquerdistas.

Deu certo, obtive apoio da Comissão de Relações Exteriores do Parlamento canadense, do Partido Camponês da Suíça (membro do governo), do cardeal de Paris, do governo sueco e de uma parte da bancada democrata no senado americano, entre outros. Em dezembro Manoel foi apresentado a um juiz e teve sua situação regularizada depois de meses de torturas e ameaças de morte nos quartéis das FFAA.

Em vários dos lugares por onde passei, quando encontrava brasileiros exilados ou não, ou estrangeiros dispostos a levar adiante a campanha a nível local ou nacional, criei comitês de solidariedade com o povo brasileiro, com os quais mantive contato e municiei com informações e orientações nos anos subsequentes, em geral até o golpe do Chile.

Depois do Chile

O golpe levou dezenas de companheiros e companheiras para o Estádio Nacional ou para o Estádio de Chile, sendo alguns assassinados pelos militares. Muitos outros se refugiaram nas embaixadas da Argentina, Panamá, Venezuela, Suécia, México e, para cidadãos com dupla nacionalidade, França, Itália e Suíça. A diáspora, até então concentrada no Chile, dispersou-se em dezenas de países, na maior parte da Europa, com cerca de 350 na França, quase todos em Paris. Um segundo país de abrigo importante foi a Suécia com cerca de uma centena. Algumas dezenas foram parar na Suíça, Bélgica e Alemanha. Um punhado se refugiou na Dinamarca, Holanda, Itália, Inglaterra, Canadá e Estados Unidos. Não tenho ideia de quantos foram parar nos países socialistas, mas desconfio que o maior número foi para Cuba.

Não creio que fôssemos mais do que 1500 ao todo, apesar de a imprensa brasileira ter divulgado, em 1979, que seriam 10 mil. Este número super exagerado originou-se de uma entrevista para a revista Veja do José Anibal Pontes, um dos membros do CBA Paris. Questionei esta avaliação em uma reunião da coordenação do comitê e ele disse que tinha extrapolado os números de exilados na França, segundo ele, seriam mais de 3 mil. Fiquei atônito, pois em nossas mais numerosas manifestações de exilados, nunca reunimos mais do que 400 pessoas, incluindo estudantes brasileiros que lá estavam legalmente, fazendo mestrados e doutorados. Procurei o organismo do governo francês que lidava com exilados de todo o mundo naquele país e fiquei sabendo, “em off”, que seriam 327, se bem me lembro, incluindo um bebê recém-nascido (a filha de Liszt Vieira).

Ao longo do ano de 1974, período em que a maioria estava se instalando em seus novos países de refúgio e reorganizando suas vidas, as campanhas de denúncia da ditadura arrefeceram. (Clique aqui para continuar lendo o artigo publicado no Geração 68).

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Ilustração: Mihai Cauli
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