Estado de desinformação

“Sempre a mesma coisa. A consciência deliberada de americanos tão louros e de fala mansa, e por baixo uma consciência tão diabólica. Destrua! Destrua! Destrua!, murmura a consciência profunda. Ame e produza! Ame e produza!, grasna a consciência aparente. E o mundo só ouve o grasnido do Ame-e-produza. Recusa-se a ouvir o murmúrio subjacente da destruição. Até o momento em que é obrigado a ouvir.”
(D. H. Lawrence em Estudos sobre a Literatura Clássica Americana).

I

O país que elegeu Donald Trump parece ser também um país esgotado, empanturrado, farto de si mesmo, que não tem mais nada para dizer a não ser insistir, na frente do espelho, e bradar para os outros, a perenidade de sua grandeza. Não mais escamoteia a soberba e a arrogância. É o que tem para dizer. Repetir-se. E se toma fôlego, é para logo em seguida de novo se repetir – e se degradar e descer ladeira abaixo rumo ao lodo, à violência, a autocontemplação e ao vício. Acostumado a se repetir, adicto à própria adição, tudo o que consegue é acumular a partir dos próprios excessos. A obesidade se tornou uma consequência e, ao mesmo tempo, uma necessidade aparentemente insanável. Os gestos, movimentos e palavras perderam o frescor que um dia tiveram. Já não diz nada, apenas ameaça. Ameaça expulsar, prender, castigar, ou o que seja necessário para fazer executar sua missão Imperial. Esse país mudo, esclerosado pelo vício e pela falta de empatia, embotado e cego pela imagem que vê refletida nas superfícies espelhadas de suas metrópoles, no entanto, falou – alto e bom som, como se costuma dizer –, ao eleger, peremptoriamente, aquele que sem nenhuma dúvida melhor o representa. O brilho da sua imensa riqueza não esconde a podridão das correntes profundas que conduzem seus gestos e suas ações. Quem sabe a operação toda não tenha outro sentido que não o de liberar do subterrâneo as energias as mais tenebrosas e trazê-las à tona para alimentar sua ferocidade – e sua ganância.

II

Enquanto isso, lá no topo, vai de acirrada a feroz a disputa pelo controle das almas. Os antigos manda-chuvas dos meios de comunicação começam a se lamentar pela perda de influência – e de receitas publicitárias, como destaca um artigo de primeira página do El País de domingo passado, 24/11. Não era o único a chamar a atenção para o avanço da desinformação como resultado direto do crescimento das mídias sociais. Todo o canto esquerdo superior daquela primeira página repercutia o golpe contra o bom jornalismo, representado, é claro, pela mídia tradicional. Cedo ou tarde, a lenta, mas progressiva perda do monopólio da informação viria à tona. O que poderia soar como positivo, desafortunadamente não é. Tudo indica que aqueles que, cheios de energia, estão chegando para controlar o negócio representam interesses e/ou setores do capital talvez muito mais inescrupulosos que, por exemplo, Rupert Murdoch (se é que isso é possível), o falecido Silvio Berlusconi ou seus mais moderados companheiros de profissão. Parece que estamos caminhando a passos largos para aquele limiar onde mesmo nos lamentando pela expansão do poder midiático de gente como Elon Musk, inevitavelmente gozamos com a perda de influência dos magnatas da mídia tradicional, seus vastos monopólios e, ainda mais importante, seu jornalismo muitas vezes canalha, tão ou mais manipulador que a fábrica de mentiras conduzida desde o X. Nesse universo, não existem mundos onde há luz separados daqueles onde dominam as trevas. Eles frequentemente se misturam, trocam figurinhas e promovem o intercâmbio de técnicas. Ali, aquela parte da mídia tradicional (Fox News etc.) já acostumada com a manipulação das informações não encontra dificuldades para transitar para a novilíngua comandada por Elon Musk – se é que tal transição é necessária, se é que já não praticam desde muito tempo a mesma gramática.

III

Não são poucos os jornais e, sobretudo, as redes de televisão que não se acanham absolutamente em difundir informações sem nenhuma conexão com a realidade – exceto a dos interesses de seus associados, patrocinadores e proprietários, muitos dos quais preferem que seus nomes e sobrenomes permaneçam na obscuridade. A Fox News é somente o exemplo mais emblemático – não é por acaso que Trump foi buscar entre seus quadros nada menos que o futuro secretário da Defesa do país, o apresentador Pete Hegseth. Aqui na Espanha, um pedaço significativo e talvez majoritário da imprensa e das redes de TV atua praticamente da mesma forma que os produtores de boataria e lixo opinativo hegemônico nas redes sociais – não são nem um pouco raras as ocasiões em que esse tsunami desinformativo é tão feroz que vem à tona e se torna objeto de acirradas polêmicas no parlamento e na sociedade. Mas o que dizer dos considerados respeitáveis? É fato que, agora, fustigados e sentindo o peso do látego, esses grandes jornais começam a se queixar, a bradar contra a desinformação, a manipulação tendenciosa e maliciosa das notícias, a divulgação interessada de boatos e a apresentação dos eventos de acordo com os interesses dos donos das redes sociais e seus amigos. Muito bem, mas há como esquecer que suas páginas, ao longo da história, estão também elas indelevelmente manchadas por escândalos de desinformação e/ou verdades interessadas? Não será preciso, de novo, recuar muito no tempo. Quem de boa fé testemunhou aqui da Europa, o paraíso da imprensa livre, o noticiário sobre a guerra na Ucrânia pôde ver de perto como um dos princípios básicos do jornalismo – escutar o outro lado, mostrar todas ou pelo menos as principais versões das partes num conflito – foi rasgado e dia a dia jogado na picotadora de papel. Quando os historiadores forem escrever a história dessa guerra, estarão obrigados a dedicar alguns capítulos à despudorada submissão da mídia ao comando da OTAN. Não foi a primeira vez, longe disso. Quando George Bush decidiu invadir o Iraque em 2003, usou como justificativa a existência de armas de destruição em massa nas mãos de Saddam Hussein. Era mentira e todo mundo sabia que era, uma desculpa criada a toque de caixa e difundida sob a batuta do Império. Sem o apoio dos grandes monopólios de comunicação (imprensa e redes de TV) dos Estados Unidos e do resto do mundo, a lorota não chegaria à esquina. Mas lá estavam, a postos, os bastiões da free press prontos para servir aos interesses do governo. Inegavelmente, o apoio dos icônicos The New York Times e The Washington Post à invenção propagandística do Departamento de Estado e do Pentágono deu credibilidade para a invasão, abrindo a larga autoestrada pela qual transitaria quase todo o resto da mídia dos países ocidentais. Um ano depois, em 2004, tanto um quanto o outro se sentiram constrangidos a reconhecer o erro e o fizeram, se desculpando com os leitores e o público em geral – não sei se enviaram também um pedido de perdão aos milhares de mortos, civis e não-civis, vítimas da empreitada. O suporte das redes de TV para a propagação da fraude foi, como sempre, ainda mais entusiasmado. Haverá acaso alguém capaz de sugerir que teriam sido forçadas, induzidas ao erro? Afinal era precisamente a decisão sempre soberana de um dos pilares da democracia representativa ocidental, o laureado Quarto Poder. Houve exceções, é claro. E elas serviram honrosamente para comprovar a fraude. Nos Estados Unidos, até onde sei, a exceção ficou para o jornalista independente Seymour Hersh (o TP foi quem primeiro publicou no Brasil o artigo de Hersh denunciando os verdadeiros mentores e executores da destruição do gasoduto Nord Stream), escrevendo para a The New Yorker. No resto do mundo, poucos mais: o The Independent da Inglaterra, principalmente pelos artigos do seu correspondente no Oriente Médio Robert Fisk, o Der Spiegel da Alemanha sob o governo de Gerhard Schroder e o Le Monde Diplomatique na França. Quem sabe mais uns três ou quatro gatos pingados.

IV

Ah! Mas esse é um caso isolado, alguém poderia dizer. Não, não é, e os testemunhos de jornalistas como Hersh e Fisk ao longo de várias décadas expõem fartamente a maneira como a imprensa respeitável se comporta quando o assunto é realmente importante: com irrestrita subserviência aos poderes do Estado, na sede do Império mais talvez que em qualquer outra parte do território Imperial. No que se refere às trivialidades do dia a dia, nenhum problema, não há necessidade de censura ou versões distorcidas dos fatos – o mecanismo todo se encarrega de absorver as mazelas e torná-las digeríveis para o público leitor. Mas se o assunto for de interesse direto dos donos do poder, aí os manuais das redações obedecem a normas que jamais devem vir a público.

***
Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
Clique aqui para ler artigos do autor.