Vivemos um momento de recrudescimento do conservadorismo. As pautas conservadoras hoje são plataformas de governo. As pautas feministas, quando não ignoradas, são tratadas de forma extremamente simplista e preconceituosa.

A responsável pela pasta dos direitos humanos no Brasil afirma que “meninas vestem rosa e meninos, azul”; responsabiliza a vítima pela violência sexual, como no triste episódio em que atribuiu o abuso sofrido por meninas na Ilha de Marajó ao fato delas não usarem calcinha; coloca uma criança vítima de estupro no centro das atenções, para satisfazer suas convicções religiosas contra o aborto, mesmo quando o caso envolvia um aborto permitido em lei.

E não podemos deixar de mencionar o aumento substancial do número de feminicídios.

Neste cenário, parece utópico tratar de temas como tributação sob a perspectiva de gênero. Mas é imperioso jogar holofotes sobre toda e qualquer pauta feminista, mesmo as que aparentam ser de difícil alcance, como é a questão tributária.

Será que todos sabem o custo tributário embutido na compra de absorventes, um item essencial para a saúde da mulher? Será que algum legislador parou para pensar no custo fiscal embutido na legislação do imposto de renda das mulheres divorciadas que assumem a guarda dos filhos?

Breve apanhado histórico sobre a luta feminista em torno da desigualdade tributária

Esse debate é relativamente novo no Brasil; acredito que o interesse maior sobre o tema não tenha mais de dez anos. Mas, no exterior, estudos sobre a perspectiva de gênero quanto ao orçamento público vêm sendo desenvolvidos há mais de 30 anos de forma consistente.

Os primeiros registros de conexão entre a pauta feminista e a questão tributária remontam ao século XIX. Há registros históricos que indicam que o movimento sufragista também trazia em seu seio discussões acerca da tributação. Há historiadores que afirmam que as sufragistas resgataram o lema da revolução civil americana “no taxation without representation” para justificar seu direito de não pagar tributos. Mas, embora seja certo que a luta histórica sufragista incluía pautas fiscais, não há consenso sobre as razões do movimento incluir forte resistência ao pagamento de impostos.

Dando um salto histórico para o século XX, na IV Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em 1995, em Pequim, a questão fiscal ganhou contornos mais institucionais e os governos assumiram o compromisso de incorporar uma perspectiva de gênero no processo orçamentário, de forma a suportar a igualdade.

Já em 2015, no relatório O Progresso das Mulheres no Mundo, publicado pela ONU, afirmou-se que os direitos das mulheres são parte dos princípios gerais de justiça social e econômica. Fixou-se então que a política macroeconômica e fiscal não deve ser desenhada sem considerar uma agenda de direitos humanos.

Ainda é incipiente a adesão dos países periféricos a iniciativas que visem mitigar a desigualdade entre homens e mulheres a partir das políticas fiscais-tributárias. Não é novidade que as injustiças fiscais em países em desenvolvimento são grandes e favorecem a concentração de renda. E o modelo econômico-tributário concentrador, por óbvio, também reforça as desigualdades entre homens e mulheres. No Brasil não é diferente.

Alguns conceitos e dados sobre tributação e gênero

Análises dos impactos das políticas fiscais na desigualdade de gênero usualmente focam em quatro áreas: (a) emprego remunerado; (b) trabalho não remunerado; (c) despesas sobre consumo; e (d) direitos de propriedade.

As análises estatístico-econômicas apontam que o padrão mundial predominante é o da desigualdade entre homens e mulheres, o que demonstra que as políticas econômico-fiscais voltadas às questões de gênero ainda são muito incipientes.

No Brasil, segundo os últimos dados divulgados pelo IBGE em 2019, o nível de ocupação das mulheres no mercado de trabalho é 46,1%, contra 65,5% dos homens. E os homens ganham 29,6% mais do que as mulheres. Não é novidade que, se mulheres brancas já sentem o enorme peso da discriminação, as estatísticas relativas à mulher preta são ainda mais assustadoras. Um exemplo dessa desigualdade é a maior remuneração recebida pelas mulheres brancas, que ganham 73,4% a mais do que as mulheres pretas.

Estas diferenças, por consenso estatístico e acadêmico, podem ser atribuídas à divisão por gênero das atividades domésticas, com a usual dupla ou tripla jornada das mulheres; à maior rotatividade da força feminina de trabalho, pois as mulheres muitas vezes se veem obrigadas a abandonar o emprego ou reduzir a carga de trabalho para cuidar da casa e filhos. O velado, porém existente, discurso do “custo mulher” é usado como justificativa para contratar homens e não mulheres, bem como para justificar a diferença salarial. Existem também inúmeras análises com corte de raça e classe social, mas como esse não é o foco do texto não as detalharemos aqui.

Quanto ao direito de propriedade, as estatísticas do Brasil também seguem a tendência global de maior concentração de bens e direitos com os homens. Em 2017, por exemplo, os dados extraídos da ficha de bens e direitos da declaração de imposto de renda apontam que, do total de bens declarados, 37% o foram pelas mulheres e 63%, pelos homens.

Relativamente ao consumo, as mulheres tendem a gastar uma proporção maior de sua renda em necessidades básicas como alimentação, educação e saúde.

Todas essas questões têm reflexos na esfera tributária e devem ser avaliadas não só sob o enfoque da eficiência e administração, mas também da equidade. E, claro, aqui a visão deve ser interseccional, incluindo não só viés de gênero, mas também de classe e raça.

A literatura classifica as discriminações em explícitas ou implícitas. Quando há dispositivos na legislação que determinam tratamento fiscal diferenciado pelo gênero, temos a forma explícita. Citamos, como exemplos, leis que só permitem aos homens considerar o cônjuge como dependente no imposto de renda. A forma implícita se dá quando a aplicação da lei, por quaisquer fatores, intencionais ou não, resulta em tratamento discriminatório à mulher.

A discriminação implícita no imposto de renda pessoa física no Brasil

Estudo de autoria de Joana Mostafa, pesquisadora do IPEA, traz importantes dados sobre como o sistema tributário reforça a desigualdade entre homens e mulheres. A análise de dados do imposto de renda de 2016 aponta que 1) menos mulheres declaram o imposto de renda; 2) a renda declarada das mulheres é menor; e 3) a alíquota efetiva aplicável às mulheres é mais alta, mesmo seus rendimentos tributáveis sendo menores. Os dados do imposto de renda estão consolidados no quadro a seguir:

 

Adicionem-se os dados divulgados no estudo “Estrutura tributária brasileira e seus reflexos nas desigualdades de gênero”, publicado no site do Instituto Justiça Fiscal (https://bityli.com/FCljb), no qual indicam que “i) há uma expressiva desproporção de patrimônio declarado entre homens e mulheres, superior, inclusive, à disparidade de rendimentos; ii) nas faixas de renda mais elevadas, mais de 80% dos declarantes são homens; iii) mulheres pagam alíquotas de IRPF mais elevadas do que os homens”. Aqui fazemos um parêntese, por alíquota maior entenda-se a alíquota efetiva, pois é claro que não há uma disposição legal explícita impondo uma alíquota nominal de imposto de renda maior às mulheres.

A literatura aponta como possíveis causas para a maior carga tributária aplicável às mulheres o fato de menos mulheres receberem rendimentos não tributáveis (como dividendos, por exemplo). Mas destacamos também uma distinção implícita pouco explorada: as regras vigentes aplicáveis à tributação associada ao pagamento de alimentos geram uma maior carga tributária para a mulher.

O custo fiscal do divórcio para as mulheres

A regra fiscal não faz qualquer vinculação a gênero. Aqui temos mais um clássico exemplo de discriminação implícita.

Isto porque, analisando os dados estatísticos divulgados pelo IBGE, vemos que, embora o percentual de guarda compartilhada tenha aumentado significativamente, as mulheres ainda assumem mais a guarda dos filhos. Em 2019, 26,8% dos divórcios com filhos menores incluíram a guarda compartilhada e em 62,4% do total a responsabilidade pela guarda foi atribuída às mulheres.

Então, considerando as estatísticas, é muito relevante verificar qual seria o impacto da tributação sobre os rendimentos de pensão.

E concluímos que o custo fiscal suportado pela mulher é, em média, 2,82% maior do que o do homem (alíquota efetiva = imposto devido/total de rendimentos).

Essa discrepância ocorre porque, de forma resumida, hoje a legislação estabelece que o valor pago de pensão é integralmente dedutível da base de cálculo do imposto de renda do alimentante. As despesas de educação e saúde pagas pelo alimentante, se previstas em sentença, seguirão a regra normal, ou seja, o limite de dedução das despesas de educação é de R$ 3.561,50 e para as de saúde não há limite. Por sua vez, os alimentos são classificados como rendimento do alimentando. Assim, o detentor da guarda deve incluir o valor em sua declaração de imposto de renda. É possível que se apresente declaração em separado para o alimentando. Mas nesses casos, o alimentando não poderá ser incluído como dependente na declaração de quem detém a guarda. Simulamos cenários com apresentação de declaração em separado, mas no agregado não houve redução da carga.

Outro ponto importante é que a legislação não prevê tratamento tributário diferenciado nos casos de guarda compartilhada. Hoje somente um contribuinte pode declarar o/a filho/a menor como dependente. Claramente essa regra, sob a ótica meramente fiscal, desestimula a guarda compartilhada.

Por que não pensar então em soluções para reduzir essa discriminação implícita existente na legislação fiscal? Esse é um desafio que os legisladores têm que enfrentar na busca por equidade fiscal de gênero.

A discriminação implícita na tributação sobre o consumo

Outras distorções são perceptíveis quando analisamos a tributação sobre o consumo. A absurda regressividade do sistema tributário brasileiro, que concentra sua arrecadação sobre o consumo, é o principal fator de manutenção das desigualdades sociais. Nesse aspecto, o impacto é muito mais sentido por mulheres pobres.

Um dos fatores dessa desigualdade ser ainda mais relevante para as mulheres deve-se ao seu papel social no arranjo familiar. O denominado “trabalho não remunerado” tem não só os tradicionais impactos econômicos vastamente discutidos na literatura econômica feminista, mas também impactos diretos, mesmo que implícitos, na maior carga tributária a elas aplicável. É fato que os gastos das mulheres são muito voltados para a manutenção da família. Há inúmeros estudos estatísticos que comprovam tal afirmação. Assim, se a tributação sobre o consumo é injusta e desigual, é mais provável que seus efeitos perversos sejam mais sentidos pelas mulheres.

Na temática da tributação sobre o consumo, há ainda discussões sobre o impacto sofrido pelas mulheres em relação à maior alíquota incidente sobre produtos femininos, mesmo os essenciais, como absorventes e anticoncepcionais. A literatura estrangeira é repleta de estudos sobre a tributação diferenciada sobre produtos femininos e também no maior preço cobrado em produtos similares, mas apresentados em sessões masculinas ou femininas. O que denominam Gender Bias Taxation e Pink Taxes são temas muito discutidos no exterior, com acaloradas defesas contra e a favor de sua efetiva existência.

O custo fiscal sobre absorventes descartáveis – uma luta necessária contra a “precariedade menstrual”

Uma das lutas feministas é contra a “precariedade menstrual”. No seio dessa pauta está a luta pelo fornecimento gratuito de absorventes para as mulheres de baixa renda e pela redução da tributação incidente sobre sua venda.

O custo médio no Brasil da tributação sobre a venda de absorventes é de 27,25% (https://bityli.com/lEqE7), uma carga muito alta quando comparada a muitos países (https://bityli.com/lVh0f) e ainda mais cruel se considerarmos o alto grau de desigualdade social existente no Brasil.

Essa luta tem gerado frutos em vários países do mundo. E no Brasil, o Rio de Janeiro saiu na frente. A lei municipal nº 6603/19 obriga a distribuição de absorventes nas escolas públicas do Rio de Janeiro. E em julho de 2020, o absorvente foi incluído na lista de itens da cesta básica, o que fez zerar a alíquota do ICMS sobre o produto, reduzindo a tributação total no Rio para 9,25%.

Há em tramitação na Câmara dos Deputados (https://bityli.com/M3HeF) seis projetos de lei que tratam da matéria, sendo que dois visam a redução da tributação e quatro, a distribuição gratuita de absorventes em escolas e espaços públicos.

Essa questão pode não ser relevante para quem o custo dos absorventes não pese em seu orçamento, mas para grande número de mulheres conseguir o acesso a absorventes gratuitos é uma das mais basilares necessidades de saúde, o que lhes é frequentemente negado. Conseguimos um avanço nessa pauta, principalmente se considerarmos o simbolismo dessa vitória num cenário conservador e de austeridade fiscal.

O alegado custo da mão de obra feminina – bons ventos vindos do STF

É muito comum ouvirmos que é muito caro contratar mulheres. Mulheres engravidam, tem que se ausentar do trabalho para levar filhos ao médico, para participar de reuniões escolares etc. Muitos empresários usam esse discurso, muitas vezes para privilegiar a contratação de homens ou até mesmo para oferecer salários menores para as mulheres. Por óbvio, a questão do cuidado familiar é uma construção cultural e ainda há uma luta enorme para aumentar a participação masculina nesses cuidados de forma tal que um dia essas discriminações contra a mulher no mercado de trabalho passem a ser coisa do passado.

Mas mudanças culturais exigem tempo. E, enquanto elas não se concretizam, há mudanças que podem ser efetuadas. E aqui entra de novo a questão da tributação e gênero.

A legislação fiscal prevê, por exemplo, que a contribuição previdenciária devida pelas empresas (INSS Patronal), hoje em 20% sobre o salário, incide sobre o salário maternidade, um benefício que é pago pelo INSS. Claro que essa incidência aumenta diretamente o custo fiscal da folha de pagamento e como só a mulher recebe salário maternidade é indiscutível que esse é um exemplo claro de discriminação de gênero.

Mas a boa notícia é que o STF, em agosto de 2020, ao julgar o Recurso Extraordinário nº 576.967, declarou ser inconstitucional a incidência da contribuição previdenciária patronal sobre o salário maternidade e o argumento vencedor foi o de que era necessário corrigir a distorção da legislação tributária, que contribuía para a preterição da mão de obra feminina. Uma prova cabal de que a luta vale a pena.

A Reforma Tributária ainda aponta para a manutenção da desigualdade. É chegada a hora de intensificarmos a luta por uma reforma que busque a efetiva redução da desigualdade, inclusive a de gênero.

As propostas de Reforma Tributária em discussão até o momento não mudam a essência da regressividade de nosso sistema. Ao contrário, reforçam a desigualdade ao não incluírem alterações estruturais na tributação da renda. Não há uma proposta que trate da tributação de dividendos, alteração das faixas de tributação e, menos ainda, o imposto sobre grandes fortunas. As propostas sob análise (PECs 45/2019 e 110/2019 e PL 3.887/2) se limitam aos impostos sobre o consumo, visando simplificar o sistema, o que é crucial. Mas inúmeros de seus dispositivos podem implicitamente reforçar as discriminações de gênero. Destacamos propostas que vedam a concessão de incentivos fiscais, o que impediria, por exemplo, isenções ou reduções de alíquota para produtos da cesta básica. Essa alteração – se considerarmos o arranjo social brasileiro em que há muitas mulheres responsáveis economicamente por suas famílias – resultará em aumento da carga tributária mais sentida pelas mulheres.

A prova de que o bom combate gera resultados é a Emenda 84 à PEC 45/2019, da bancada do PSol na Câmara, que propõe nova redação para o inciso III do artigo 154 da Constituição Federal, para permitir que a União institua impostos seletivos para estimular o comportamento inclusivo de caráter étnico-racial e de gênero na produção e comercialização de bens, serviços ou direitos.