No último dia 14, o presidente estadunidense Joe Biden anunciou um forte aumento de tarifas sobre produtos chineses para entrar nos EUA. 25% sobre aço e alumínio, 50% sobre semicondutores, 100% sobre carros elétricos e 50% sobre painéis solares, com o argumento explícito da disputa geopolítica com a China. Diz a mensagem no X (antigo Twitter) do presidente estadunidense: “A China está determinada a dominar essas indústrias. Eu estou determinado a garantir que os EUA liderem o mundo nelas”. Várias delas não saem do zero, representam acréscimos sobre tarifas já existentes, como, por exemplo, no caso de carros elétricos, que já tinham tarifa de 25%.

É importante apontar que o ambiente em que esses aumentos foram apresentados ao público não é apenas o de uma disputa com a China. Há pouco tempo, o governo estadunidense havia se posicionado contra a compra da poderosa empresa siderúrgica dos EUA, a US Steel, pela japonesa Nippon Steel. Nesse caso, valem ser observados dois pontos: nem o setor de aço é um setor da ponta da tecnologia que está em disputa nesse momento, e longe de ser um competidor geopolítico global com os EUA, o Japão, empresa que abriga a matriz da Nippon Steel, é o principal parceiro do país na Ásia.

Trata-se, portanto, de um ressurgimento ao vivo e a cores do bom e velho nacionalismo econômico, que andou submerso, ao menos como discurso de estratégia de desenvolvimento, nos tempos áureos da globalização econômica. Esse nacionalismo vinha voltando desde a crise econômico-financeira de 2007-2008, primeiro de forma envergonhada, depois meio disfarçado, em seguida por rompantes, e agora aparece como discurso estratégico – e, observem, no caso dos EUA, não vocalizado pelo radicalismo de Trump apenas, que fez isso entre 2017 e 2021, mas pelo seu contendor, atual presidente, que na campanha defendia um certo multilateralismo no cenário global.

Feita desse modo unilateral, a elevação tarifária representa ainda um duro golpe no sistema de regulação multilateral de comércio. Esse sistema, deve ser lembrado, começou a se constituir do ponto de vista das ideias a partir do vislumbre de que os chamados “aliados” ganhariam a Segunda Guerra Mundial contra especialmente alemães e japoneses. Ao mesmo tempo, eles se dividiriam com o final da guerra, em função de que um dos principais aliados era a antiga URSS, com quem não se poderia contar para organizar o funcionamento econômico do pós-guerra, já que defendia outro sistema econômico (para quem não lembrar, URSS é o acrônimo para a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), o socialismo.

Assim, a reconstrução da economia mundial no pós-guerra, pensada a partir da Conferência de Bretton Woods, partiu da avaliação de que a crise dos anos 1920-1930 foi causada pela desregulação financeira e pelas desvalorizações competitivas das moedas nacionais causada pela guerra comercial. Essa crise havia levado, inclusive, ao fim do padrão-ouro como sistema de relação entre as moedas internacionais. Para que o mundo funcionasse bem, deveriam ser evitadas guerras comerciais e desvalorizações competitivas. Para isso, foi criado o Fundo Monetário Internacional (cuja principal função era regular as finanças mundiais e evitar crises de balanço de pagamentos que levasse às desvalorizações entre as moedas) e o Banco Mundial (para financiar projetos de desenvolvimento), e se apontou a criação da chamada Organização Internacional do Comércio (OIC), para regular o comércio de forma multilateral.

A OIC deveria ser criada na sequência das instituições financeiras, mas não foi, por posicionamento do próprio EUA, que disse que não participaria da organização, por recusar limites à sua soberania (comercial, no caso). Sem os EUA, nada feito, já que os EUA era o principal parceiro de quase todo mundo na saída da Segunda Guerra, em que as economias europeias tinham sido devastadas, enquanto a economia dos EUA permaneceu não apenas intacta, mas absolutamente pujante, pelo impulso produtivo da própria guerra.

Apenas em 1995, cinquenta anos depois, foi criada a OMC (Organização Mundial do Comércio), para cumprir a função da regulação financeira multilateral. De 1945 a 1995, o que houve de regulação parcial do comércio multilateral foram as chamadas “rodadas do GATT” (GATT é a sigla em inglês para Acordo Geral de Tarifas e Comércio), que se estendiam por anos e negociavam a redução tarifária em produtos e/ou setores. A criação da OMC, no furor liberalizante e globalizante dos anos 1990, representava a finalização do mundo econômico desenhado no pós-guerra, e em especial no momento em que, na Europa, se desmanchava econômica e politicamente o antigo bloco socialista.

Em tempos de disputa hegemônica no cenário mundial, os EUA nos dão, através de suas lideranças, de forma cada vez mais clara, os elementos para entender a profundidade das mudanças pelas quais estamos passando. Um dos pilares da OMC era a regulação multilateral de tarifas. Ao impor (e defender!) barreiras tarifárias unilaterais de forma explícita, os EUA estão dizendo claramente ao mundo que a OMC, pelo menos para o que ela foi criada, não tem mais serventia. E que o mundo da regulação multilateral de comércio está na prática terminando, ao menos para quem quiser ver.

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Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
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