Como foi possível chegarmos a uma situação histórica, política e institucional de derrocada e barbárie, coroada por um governo de perfil fascista a caminhar sobre centenas de milhares de mortos? As especificidades do Brasil derivam de suas escolhas políticas recentes ou podem ser escrutinadas em raízes mais profundas, a nos iluminar desde longe a amplitude do problema brasileiro?

Estas não são questões fáceis, nem podem ser respondidas sem um esforço interpretativo abrangente. Boa parte deste percurso analítico já foi traçado por um punhado de intelectuais do pensamento social e político do país. Boa parte foi, de certo modo, ignorada pela maioria dos juristas pátrios, com exceções muitas vezes não honrosas.

Nossos grandes juristas, não aqueles citados ad nauseam em acórdãos de tribunais superiores, mas os que ajudaram a forjar diretamente a nossa institucionalidade e a nossa história constitucional e política, muitas vezes flertaram abertamente com o atraso, com o arbítrio, com a ditadura. Foram, de alguma forma, realistas, ao traduzir os interesses violentos de nossas classes dominantes, no que o sociólogo Florestan Fernandes classifica como o projeto de autocracia burguesa.

Uma das possibilidades para o desvelamento do nosso destino atual é olharmos para as circunstâncias políticas e intelectuais que forjaram esse caminho de regularidade da exceção e de excepcionalidade dos “hiatos” democráticos. Como afirmo no meu livro Teoria Constitucional, ditadura e fascismo no Brasil , somos autoritários e temos extrema dificuldade de permanecermos em situação de igualdade social e isonomia. Pelo menos até os dias que correm, preferimos apostar na desfaçatez e na subordinação da ditadura a investir na liberdade e na pluralidade republicanas.

Mas é bom que se frise que esses percalços de nossa trajetória têm muito de golpes de Estado, de traições à vontade popular, de utilização de meios sofisticados para que o povo aceite ser explorado e expropriado sem reação. Ou que sucumba diante da simples e pura repressão.

Essa história não contada, ou parcialmente contada por poucos, remexe nas entranhas da nossa tradição elitista e autocrática. Imprescindível extrair dela os elementos que permitirão a sua crítica, para caminhar, quiçá, para sua derrota.

É de se passear pela sociologia, pela filosofia e pela teoria política e constitucional que ajudaram a configurar o pensamento e a ação, a prática e as instituições que sedimentaram o nosso atraso reacionário e o nosso presente protofascista. É de se desbravar temas e autores surpreendentemente inéditos, mas cuja importância histórica é inegável.

Personagens como o ex-ministro da Justiça Francisco Campos, apesar de conhecidos, eram solenemente ignorados na sua dimensão demiúrgica. Ainda assim, escreveu a Constituição de 10 de novembro de 1937, que procurou legitimar o golpe do Estado Novo, e foi o artífice fundamental do processo de modernização da legislação sob Vargas. Em 1964, escreveu o preâmbulo do AI-1 que fundamentou o golpe Empresarial-Militar e que continuou a orientar os Atos Institucionais seguintes, no seu anticomunismo retórico e na sua ojeriza às liberdades democráticas.

O interessante é que a inteligência de Campos não se circunscreveu à construção de uma ordem jurídica sólida, que irradia sua influência nefasta até hoje. Como outros autores que abordei no livro, construiu categorias teóricas que orientaram o processo de subordinação do povo brasileiro às suas elites, como a ideia do mito político do César: comandar de forma irracional as massas urbanas através da propaganda e da ubiquidade dos meios de comunicação, num processo que tinha como horizonte de sentido a destruição das instituições políticas de perfil liberal, como partidos, eleições e parlamento.

Se Campos inaugura a retórica que quer adjetivar as ditaduras de democráticas, ele não está sozinho na trajetória de nossa história recente. De Campos à Lava-jato, de Vargas – em certos aspectos – até Bolsonaro, temos uma continuidade que não nos permite olhar a nossa tragédia atual com ares de surpresa.

É nosso dever não nos olvidarmos de examinar os pormenores de nossos caminhos à distopia contemporânea, que nos assola, exatamente para não alimentarmos o dessabor de termos que repeti-la.

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