Ilutração: Mihai Cauli
Ilustração: Mihai Cauli
Muitos políticos da esquerda brasileira apontam a Frente Ampla (FA) do Uruguai como um exemplo de unidade, coerência ideológica e democracia interna. O partido, às vezes um pouco idealizado por alguns, passa por um difícil processo de autocrítica e de renovação de suas lideranças. Está sem presidente oficial desde julho e em dezembro de 2021 elegerá seu novo presidente. A autocrítica deve-se ao fato de que, além da derrota eleitoral de 2019, houve uma forte queda do número de eleitores em relação às eleições anteriores. Em 2014, a Frente Ampla teve 47,81% dos votos no primeiro turno. Em 2019 foram 39%.

Neste mês de setembro surgiu uma novidade, que é representativa da atualização da Frente Ampla: o nome de Fernando Pereira despontou com força para assumir a presidência do partido e desde então seu nome tem sido apoiado por muitos setores, inclusive pelo ex-presidente do Uruguai, José Mujica. O que chama a atenção é que Pereira não faz parte de nenhum órgão de direção da Frente Ampla, não é deputado ou senador, mas sim o presidente da PIT-CNT (Plenario Intersindical de Trabajadores – Convención Nacional de Trabajadores), única central sindical do Uruguai que, em um país com pouco mais de três milhões de habitantes, tem aproximadamente 400 mil trabalhadores filiados dos mais diversos setores.

Entretanto, para entender o atual processo de renovação da Frente, é preciso saber como se desenvolveu o partido e como chegou ao atual contexto crítico. A Frente Ampla foi fundada há exatos 50 anos, em 1971. O mesmo país, que até a década de 1950 havia sido um exemplo de estabilidade, paz e desenvolvimento social, enfrentou durante os anos 1960 uma forte crise econômica, cujos resultados foram a alta do desemprego e da inflação, um acirramento dos conflitos sociais com greves e manifestações de estudantes, culminando no aumento da repressão e no decreto das medidas prontas de seguridad, uma espécie de versão uruguaia do AI-5, pelo então presidente Pacheco, em 1968. A partir de então, a situação tornou-se mais violenta. O governo colocou o exército para reprimir tanto a guerrilha como as manifestações pacíficas. Ocorreram as primeiras mortes de estudantes e trabalhadores. O aprofundamento da crise e a falta de soluções por parte do governo foi uma das principais motivações para a formação da Frente Ampla pelo Partido Comunista, o Partido Socialista, o Partido Democrata Cristão, políticos e setores mais progressistas dos tradicionais partidos Colorado e Nacional. Fundada oficialmente em fevereiro de 1971, disputou as eleições já em novembro do mesmo ano, quando obteve 18% dos votos, algo inédito no Uruguai, onde os dois partidos tradicionais alcançavam mais ou menos 90% dos votos nas eleições. O candidato foi Líber Seregni, general da reserva, ligado aos setores progressistas do partido Colorado. Republicano e democrata, carismático, inteligente, conhecido por seu equilíbrio e por sua integridade (foi reformado após se negar a cumprir ordens de reprimir manifestações nos anos 1960), Seregni foi o primeiro candidato presidencial da Frente Ampla, sua principal liderança e presidente do partido durante 25 anos.

A partir da volta da democracia em 1984, a Frente Ampla aos poucos foi se consolidando como oposição, aumentando sua votação a cada eleição. Surgiram então as figuras de Danilo Astori, economista, seguidor fiel de Seregni, eleito senador e líder do então maior grupo interno da Frente, ministro da Economia nos dois governos de Vázquez e vice-presidente de Mujica; e de Tabaré Vázquez, primeiro prefeito de esquerda eleito em Montevidéu, médico e socialista, que era desconhecido do grande público até as eleições para a prefeitura em 1989. Aos poucos, Vázquez tornou-se o principal nome dentro da Frente Ampla, a ponto de ser o candidato presidencial já nas eleições de 1994, chegando a 30% dos votos. Em 1996, Vázquez assumiu a presidência da Frente Ampla, sendo o candidato nas eleições de 1999 e 2004, quando venceu pela primeira vez, consolidando-se como o principal nome da FA, e escolheu Danilo Astori como ministro da Economia.

Durante o período do primeiro governo da Frente (2005-2010), o Movimiento de Participación Popular (MPP) passou a ser o mais votado dentro da FA, em boa parte graças à popularidade de seu líder José Mujica. Mesmo que apenas Vázquez tivesse ocupado oficialmente o cargo de presidente do partido, tanto ele quanto Astori e Mujica foram as principais lideranças da Frente Ampla desde a “aposentadoria” de Seregni em 1996. Desde que Vázquez deixou a presidência do partido em 2004, a FA teve três presidentes, mas nenhum deles conseguiu a influência e a relevância nem de Vázquez, de Mujica ou Astori. É este espaço que Pereira buscará preencher.

Após essa contextualização, é importante atualizar o leitor brasileiro sobre a Frente Ampla uruguaia. Como está o partido agora que voltou a ser oposição? Quais nomes estão surgindo, ou se afirmando, como possíveis apostas para as (ainda distantes) eleições de 2024? Em 2019 a Frente perdeu as eleições depois de 15 anos no governo. A partir da derrota, o partido iniciou um processo de autocrítica e de renovação, que por si só é bastante complexo, ainda mais em uma força política formada por muitos partidos e grupos menores. E tornou-se ainda mais difícil devido ao contexto de pandemia.

Apenas no primeiro ano da pandemia, segundo dados oficiais, 100 mil pessoas entraram na linha de pobreza no Uruguai, país com menos de 3,5 milhões de habitantes. No ano de 2020, o governo do presidente Lacalle Pou aprovou uma Ley de Urgente Consideración (LUC), base de seu plano de governo, com aproximadamente 500 artigos, algo inédito na história do país. Os artigos representam profundos retrocessos em legislações anteriores em questões como educação, segurança, trabalho, economia, direitos sociais e muitos outros.

No entanto, a legislação uruguaia prevê que uma lei pode ser revogada por referendo. Para isso, é necessária a assinatura de aproximadamente 670 mil eleitores para habilitar o referendo. A oposição então selecionou os artigos considerados de maior retrocesso nas políticas públicas – ao todo foram selecionados 135 artigos para serem revogados. Em uma intensa campanha para aprovar o plebiscito que permitiria revogar os 135 artigos da LUC, a oposição conseguiu juntar quase 800 mil assinaturas. A oposição foi representada não apenas pela Frente Ampla, mas pelos movimentos sociais e pelo PIT-CNT, cujo presidente é, justamente, Fernando Pereira.

Pereira, 52 anos, cristão ligado à teologia da libertação, debatedor firme, constantemente convidado para entrevistas em jornais e canais de televisão, foi a cara visível e o principal porta-voz da campanha pelo referendo contra 135 artigos da LUC. Como pontos a favor de sua candidatura à presidência da Frente, Pereira é muito mais próximo dos sindicatos e dos movimentos sociais do que qualquer político, o que ajudaria a renovar e aprofundar algumas das propostas da Frente Ampla. Além disso, tem boas relações com os partidos da coalizão de governo atual e com o presidente Lacalle Pou.

A crítica feita por alguns políticos de centro-direita é que se Pereira for o presidente da Frente Ampla, o PIT-CNT perderá sua independência em relação à FA e será uma prova de que o PIT-CNT é o braço sindical da Frente. O que se pode dizer em defesa de Pereira, é que nas eleições de 1984 o então presidente da central sindical, José D’Elia, foi o candidato à vice-presidência pela FA, e que a relação entre a central e o partido não é segredo para ninguém. Outro ponto a destacar é que os partidos tradicionais, sempre que governaram o Uruguai, tiveram entre seus ministros representantes de associações empresariais, comerciais e rurais. O atual ministro da Agricultura, Pecuária e Pesca, por exemplo, foi presidente da Associação Rural do Uruguai.

Se confirmado como presidente do partido, Pereira surge como um possível candidato para a presidência em 2024. Que outros nomes a Frente Ampla poderá apresentar às eleições? Em outubro de 2020, Mujica anunciou sua aposentadora e deixou o Senado. Vázquez faleceu em dezembro de 2020. Astori continua senador, mas nas próximas eleições em 2024 terá 84 anos e não será uma opção para disputar a Presidência do país.

Muita água ainda vai correr nestes três anos até a eleição. Atualmente, podemos apontar dois nomes que, inclusive, podem estar na mesma chapa. Um deles é Yamandú Orsi, ex-professor de história, intendente reeleito de Canelones (departamento com a segunda maior população do país) que terá 61 anos nas próximas eleições – jovem para os padrões uruguaios. Carismático, Orsi tem feito uma boa gestão na cidade, com alta aprovação e é um dos políticos da Frente Ampla com maior popularidade.

Outro nome forte é o de Carolina Cosse, atual prefeita de Montevidéu. Cosse foi ministra de Indústria e Energia no segundo governo Vázquez, presidente da estatal de telecomunicações ANTEL no governo Mujica e eleita senadora em 2019, antes de ser candidata à Prefeitura de Montevidéu. Terá 63 anos nas próximas eleições e poderá ser a primeira mulher candidata à Presidência.

Para esquerda brasileira

Em relação à esquerda brasileira, que lição pode ser tirada? O ponto mais relevante é a valorização das bases, os movimentos sociais e os sindicatos (mesmo que no Brasil atual não tenham a mesma força), permitindo a inclusão de atores sociais que normalmente não teriam espaço na organização do partido e que podem agregar novas demandas e ampliar o eleitorado do partido. O PT do Rio Grande do Sul parece estar indo pelo mesmo caminho, a partir da confirmação de Edegar Pretto como pré-candidato a governador. Pelo fato de ser reconhecido por sua participação em movimentos populares e de trabalhadores rurais e urbanos, indica uma possível renovação política e ao mesmo tempo representa uma revalorização de suas bases históricas.

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