Uma nova perspectiva sobre o envelhecer

Oficialmente o outono começou no dia 20 de março, quando comecei a escrever esse texto. Ao me dar conta disso, não pude deixar de associá-lo à metáfora da vida: outono e envelhecimento. Transformação, transição, rito de passagem.

Chamar alguém de “velho”, com o tempo, começou a ser considerado desrespeitoso e outros termos foram incorporados com a intenção de “amenizar” o vocábulo, e o “velho” passou a ser “idoso”… e surgiu a “terceira idade”… e logo a “melhor idade”, o que retrata a produção social do preconceito.

Faço referência a um interessante artigo sobre o tema chamado Melhor idade, ou naturalização da velhice e produção de preconceitos?, no qual as autoras discorrem sobre essa lógica social, que imprime ao indivíduo idoso o selo de anacrônico, o avesso do criativo e do produtivo, configurando o contrário de tudo que é valorizado na nossa sociedade ocidental, carregando quase uma culpa pela sua permanência e pela duração de sua existência. A velhice com essa caracterização vem acompanhada de um tom decadente e pejorativo, não podendo desfrutar de um status social. Diante dessas denominações, sigo a linha dos que acham que devemos tratar essa faixa etária como “idosos” mesmo. Sem falsos floreios.

E o pensamento segue irrequieto, e traz à lembrança um fato recente e deprimente, que envolve o tema etarismo: o caso das três estudantes de biomedicina de Bauru, no interior de São Paulo, que debocharam de uma colega de 44 anos que estava iniciando o curso com elas, em um vídeo que viralizou e levantou inúmeras discussões sobre o tema.

Esse assunto também fez parte do discurso antietarista da vencedora do Oscar de melhor atriz, Michelle Yeoh, que aos 60 anos aproveitou o momento para dar um recado, que foi amplamente reproduzido na mídia: “senhoras, não deixem ninguém dizer que vocês já passaram do seu auge; nunca desistam”.

Esse tema vem sendo abordado oficialmente por várias organizações, e a OPAS – Organização Pan-Americana de Saúde – produziu o documento Relatório mundial sobre o idadismo,  2022, mostrando que “o idadismo é prevalente, amplamente disseminado e insidioso, e passa em grande medida despercebido e incontestado”. O estudo explica que o termo idadismo, ou etarismo (em inglês, ageism), foi cunhado em 1969 por Robert Butler, um gerontólogo americano que foi o primeiro diretor do Instituto Nacional do Envelhecimento dos Estados Unidos. Mas, para muitos, o conceito é relativamente novo, o que pode dificultar a conscientização sobre esse fenômeno social e a promoção de mudanças. Para essa organização, o etarismo (ou idadismo) é o conjunto de estereótipos, preconceitos e discriminações direcionados a pessoas com base na idade e pode se apresentar de forma institucional ou interpessoal.

O estereótipo é um elemento que assume diferentes formas e foi motivo de estudo pelo legislativo, chamando a atenção a aprovação na CCJ – Comissão de Constituição e Justiça – do PL 2256/2021 que dispõe sobre a mudança na imagem que representa pessoas idosas na demarcação de vagas de estacionamento, filas preferenciais, assentos e outros serviços onde quem tem mais de 60 anos tem prioridade por lei. Na ilustração proposta, a figura do idoso curvado e de bengala é substituída por outra, onde ele aparece caminhando, com a descrição “60+”. O autor justifica que a imagem atual denota preconceito contra os idosos, incentivando a intolerância e a discriminação.

O idadismo (ou etarismo) começa muitas vezes na transmissão de valores desde os primeiros anos, ao suscitar atribuição de valores negativos em relação a pessoas idosas como sendo dependentes, inativas, feias e incapazes ou até mesmo criando lendas como o “velho do saco”, provocando medo e rejeição na infância.

As mudanças apontadas pelos recentes levantamentos estatísticos (IBGE) mostram transformações significativas em nossa pirâmide etária, com um gradual envelhecimento da população brasileira. Consequentemente, dentro de nossas organizações, há um aumento da idade média da força de trabalho e o comportamento preconceituoso pode afetar negativamente a saúde física e mental dessa parcela da população. A sociedade precisa estar preparada para a inclusão dos idosos na vida útil e produtiva. O processo de envelhecimento traz alterações orgânicas sem dúvida, mas estas não devem ser determinantes para negar o potencial que essa pessoa tem.

Não podemos perder de vista que a idade, além de estar relacionada a processos biológicos, ela é em grande parte determinada socialmente. As diferentes culturas são responsáveis por definir a expectativa para cada etapa da vida. Se para alguns a velhice é privação, para outros é um processo natural não marginal ou impeditivo de viver plenamente seus interesses e aptidões. E até mesmo de ter protagonismo, como em algumas sociedades.

Não só o mercado de trabalho tem que se adaptar à mudança etária, mas também a medicina precisa incorporar as novas tecnologias para enfrentar a longevidade. Uma outra publicação da OPAS –Envelhecimento ativo: uma política de saúde, 2005, alerta para o reconhecimento de que os idosos não constituem um grupo homogêneo e que há uma grande diversidade entre esses indivíduos. A forma como envelhecemos está ligada a fatores prevalentes, tais como o acesso à assistência à saúde, à educação e à renda. As diferenças que vemos entre as pessoas idosas resultam dessas iniquidades. Portanto, estamos falando que nem todos têm a possibilidade de vida saudável, social e produtiva nessa etapa.

O Relatório da OPAS de 2022, já citado, preconiza três estratégias para reduzir o idadismo: políticas públicas, intervenções educacionais e a interação entre pessoas de diferentes gerações. Os benefícios virão na saúde dessa população, no aumento de oportunidades e na qualidade de vida de modo geral.

Dessas estratégias, destaco o contato intergeracional, lembrando de uma excelente iniciativa, a Human Library Organization aqui traduzida como “Biblioteca Humana”, uma organização e movimento internacional que começou em Copenhague, Dinamarca, em 2000. Tem como objetivo abordar os preconceitos das pessoas, ajudando-as a conversar com aqueles que normalmente não encontrariam. A organização usa uma analogia de biblioteca ao emprestar pessoas em vez de livros. Os interessados demandam um tema, e o “livro humano” disponibiliza o relato sobre o tema solicitado. Tanto o demandante como o demandado vão interagir independentemente da idade. O que importa é a experiência sobre o assunto em pauta, a vivência, a empatia, onde os participantes aprendem sobre o outro e também desafiam seus próprios preconceitos.

Outra iniciativa para incentivar a mudança de paradigma envolve as cidades e comunidades para que se adaptem às necessidades da população que envelhece.  Foi criada a Rede Global da OMS de Cidades e Comunidades Amigas das Pessoas Idosas (GNFACC, na sigla em inglês). O mapa interativo dos países e cidades pode ser visitado no site da OPAS. Uma cidade ou comunidade amiga das pessoas idosas é um lugar que adapta seus serviços e estruturas físicas para ser mais inclusivo e receptivo às necessidades de sua população, para melhorar sua qualidade de vida à medida que envelhece. Uma cidade amiga incentiva o envelhecimento saudável, otimizando recursos para melhorar a saúde, a segurança e a inclusão das pessoas idosas na comunidade. Já são 830 (oitocentas e trinta) cidades que fazem parte da Rede.

A OPAS lidera a agenda concertada da Década do Envelhecimento Saudável nas Américas 2021-2030, que foi declarada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em dezembro de 2020, e é a principal estratégia para construir uma sociedade para todas as idades. Esta iniciativa global reuniu esforços para preconizar ações para melhorar a vida das pessoas idosas, suas famílias e as comunidades onde vivem. Resumindo, as quatro áreas de ação de cada década são:

  1. Mudar a forma como pensamos, sentimos e agimos com relação à idade e ao envelhecimento;
  2. Garantir que as comunidades promovam as capacidades das pessoas idosas;
  3. Entregar serviços de cuidados integrados e de atenção primária à saúde centrados e adequados à pessoa idosa; e
  4. Propiciar o acesso a cuidados de longo prazo às pessoas idosas que necessitem.

Diante de tantas iniciativas e abordagens, resta comentar sobre uma das características contemporâneas que é a rapidez do consumo, o descarte, a substituição, não só de objetos, mas de pessoas também. Nessa perspectiva não há espaço para o envelhecimento.

Voltando ao outono, e para encerrar, cito um trecho de um texto lido ao acaso:

  •  “No outono, como se comandadas por uma força misteriosa, as folhas verdes sofrem uma transformação em seu colorido e tingem-se das cores do sol. Umas de amarelo radiante, outras de laranja incomparável, ou de vermelho vivo, encantando o outono. Há ainda as folhas ressequidas, mas não menos belas, que trazem em si traços de transformações sofridas. Assim como o outono, as formas de viver a velhice são  distintas, assumem características diferentes em cada pessoa, experiência totalmente subjetiva, o que leva à diversidade de conceitos e experiências, e que contraria a tentativa de universalizar o envelhecer”, em O Enigma do Outono, Rocco, 2020.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone 

Leia também “O segundo nascimento“, de Abrao Slavutsky.