Terminadas as eleições argentinas no último domingo – e mais uma vez com surpresa. Depois da surpresa de Milei nas primárias, quando superou com folga os outros dois principais candidatos e suas coalizões, e de um primeiro turno em que Massa surpreendeu e colocou uma inesperada vantagem sobre Milei, ficando perto de fechar as eleições pelas regras argentinas (lembrando: pela legislação federal argentina, um candidato vence se conseguir 45% dos votos, ou 40% com 10% de vantagem sobre o segundo colocado – e no primeiro turno, Massa teve 36,7%, contra pouco menos de 30% de Milei, ou seja, ficou a 3,3% de fechar as eleições), Milei voltou a surpreender no segundo turno, ganhando por 55,7% a 44,3% dos votos válidos, colocando uma frente de mais de 11% dos votos que não tinha sido estimada pelas pesquisas até ali. Um resultado surpreendente. A vitória, nem tanto.
Aparentemente, Milei conseguiu arrebanhar a maioria dos descontentes com o governo da Argentina. A campanha dos dois lados foi uma campanha de rejeição. De rejeição à insanidade e ao ódio social representados pelas propostas de Milei, um candidato que até fisicamente expressava insanidade e ódio. De rejeição à corrupção e à incapacidade de gestão representadas por Massa e o peronismo/kirchnerismo no imaginário argentino. Levar um ministro da Economia, função de Massa no governo, em meio a uma brutal crise econômica, com inflação e desemprego crescentes, seria quase uma mágica, mas esteve perto de acontecer. Mas, no duelo das rejeições, ganhou Milei.
Por isso, por esse contexto da crise econômica, de um acordo com o FMI herdado do governo Macri e que, mantido na sua essência, colocou enormes limitações para o governo de Fernández, com crescimento da miséria e contenção da economia (agravados, evidentemente, pela pandemia de 2020 e pela seca mais recente), talvez menos do que com a eleição de Bolsonaro, a boa comparação com o Brasil seria com a eleição de Collor.
Milei é um candidato “para a direita”, criado pela mídia, projetado por atuações espetaculosas e histriônicas em programas de TV. Collor também foi “repaginado” pela TV, de político dos mais tradicionais, filho de famílias oligárquicas de décadas na política nacional à figura do caçador de marajás. Do outro lado, a política tradicional e uma crise econômica aguda, com crise crônica de balanço de pagamentos desde o governo Macri, acordo com o FMI, e inflação alta, empobrecimento da população e falta de perspectivas, como era o governo Sarney. É nesse quadro que Milei foi eleito.
Mas, como no caso de Bolsonaro, construído a partir da impotência da direita mais tradicional, que acaba se utilizando de uma espécie de bufão extremista para conseguir levar adiante pontos de seu programa, na Argentina também se tenta o mesmo. Novamente o recurso à extrema direita raivosa, ao discurso do ódio, à “bronca”, como dizem os argentinos. O problema, lá como cá, é que esse “gênio” que a direita tira da lâmpada para realizar seus desejos, muitas vezes se recusa a voltar. Vira uma ameaça ao próprio sistema democrático que o ajudou a aparecer. Alguns lembrarão que Hitler não galgou o poder inicialmente na Alemanha como “Führer”, mas como um primeiro-ministro no parlamentarismo alemão dos anos 1930 que chegou a esse cargo com o apoio da direita tradicional, para enfrentar social-democratas e comunistas. Uma vez o “gênio” fora da lâmpada…
Outra importante diferença com o Brasil de 2018 e 2022, as eleições disputadas por Bolsonaro (ganhou uma e perdeu a outra) é que nestas havia polarização entre ele e o candidato da frente hegemonizada pelo PT (Haddad, e depois Lula). Na eleição de Milei, não. Tanto nas prévias como no primeiro turno, o eleitorado se divide, aproximadamente, em cerca de 30% de votos para a extrema direita, 30% para a direita tradicional, e 30% para o peronismo/kirchnerismo, com cerca de 10% para a soma entre as forças políticas provinciais e a extrema esquerda. Não havia polarização. Havia disputa também entre direita tradicional e extrema direita, para seguir adiante e disputar com o governismo. Por outro lado, isso facilitou a vitória de Milei, pois a direita tradicional se mostrou, na hora da verdade, com mais medo do peronismo do que de ameaças à ordem democrática representadas pela chapa Milei/Villarruel.
A Argentina passa por uma situação dramática. Em realidade, a crise cambial desde o governo Macri fez disparar os preços, em uma situação de estrangulamento do balanço de pagamentos. Os acordos com o FMI desde então mantém o balanço de pagamentos no limite da inadimplência, em crise permanente, ao mesmo tempo em que exigem uma gestão fiscal que impede qualquer alternativa de solução alternativa. Aliás, esse debate apareceu na campanha, não apenas com a crítica da candidata de extrema esquerda, mas antes com a própria disputa no interior do peronismo.
Em um quadro como esse, surge a curiosa solução mágica de Milei, uma espécie de “dolarização sem dólares”, que muito poucos acreditem ser viável. A crise extensa acelerou a miséria, o incremento da criminalidade e a informalização da economia – ambiente ideal para uma campanha com uma pauta confortável para a direita.
O crescimento do informal também serviu para erodir a base sindical organizada em que repousa grande parte do poder do peronismo. Afinal, para quem não tem direitos, como os trabalhadores informais, os que têm algum direito são “privilegiados”, solo fértil para o discurso de Milei de retirada dos direitos – em uma curiosa coalizão entre os muito ricos, que não precisam dos direitos, e os informais, que veem os detentores de alguns direitos como privilegiados. Ambiente explosivo socialmente.
Mas que vai continuar explosivo, pois se não forem dadas respostas rápidas – que não podem ser apenas a retirada de direitos que está proposta e não é solução, têm que representar melhorias concretas para os miseráveis – a Argentina pode voltar a ser um barril de pólvora de conflitos sociais, como na virada do século, com a crise da saída da dolarização menemista (a tal “paridade”), a volta do escambo, das trocas, das moedas locais, e a generalização do mantra “que se vayan todos”. Se voltarmos ao início desse novo século, vamos poder observar que o kirchnerismo, uma ramificação do peronismo, foi a forma que a política tradicional argentina encontrou para recolocar em pé a ordem institucional depois da crise dos governos Menen e De La Rua. Vinte anos depois, a crise aguda está de volta.
O novo governo eleito, ademais, refuta melhorar a conversa com dois de seus mais importantes parceiros econômicos e institucionais no mundo, China e Brasil, mostrando que as coisas podem piorar ainda mais em termos econômicos.
Milei pode ser a solução? Muito difícil. Sem organicidade social e com propostas que não param em pé, minoria no Congresso e pouca disposição para o diálogo, uma sociedade bastante sem paciência e afeita a soluções dramáticas, e contrariando amplos interesses, deve ter o seu futuro decidido no meio a um embate radicalizado, com uma sociedade partida em duas visões bem diferentes e sem pontes que sejam capazes de representar saídas alternativas viáveis.
Assim, pode ser que, como disse a agora vice-presidente eleita, pouco antes da eleição, por descuido após uma entrevista, a saída seja a “tirania”. Mais um elemento de uma crise sem fim que pode ser esse próximo governo. Ou a crise pode ser extremamente aguda e a resistência pode se impor, levando ao fim antecipado do novo governo, o que não seria novo no caso de governos não peronistas na Argentina. Vale acompanhar, pois “vai ser com emoção”, mais uma vez o país vizinho. Infelizmente, complicam os planos desse lado da fronteira de aprofundar o Mercosul, avançar a integração regional com a Argentina e trazer esse país para o BRICS.
***
Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
Veja também “Consequências da eleição de Milei“, de Paulo Nogueira Batista Jr.