Segue a campanha no segundo turno na Argentina, e a grande pergunta é: até que ponto esse segundo turno pode oferecer nova surpresa? Essa pergunta tem duas bases objetivas: a primeira é que as surpresas apareceram tanto nas primárias (quando Milei surpreendeu e fechou em primeiro lugar, depois de pesquisas que apontavam que teria perdido fôlego e poderia ficar até em terceiro, atrás da direita tradicional e do peronismo), quanto no primeiro turno eleitoral (quando Massa surpreendeu, fechando em primeiro, com razoável folga contra o candidato da extrema direita e a candidata da direita tradicional, que acabou ficando fora do segundo turno). A segunda é porque, passada a metade do tempo de campanha do segundo turno, as pesquisas voltaram a apontar a predominância de Milei, embora por pouca margem, que segundo os institutos e consultorias que levam adiante as pesquisas, variam de cerca de 2% (empate técnico) a até 6%.

Aparentemente, Milei poderá levar a maioria dos votos da direita tradicional (Bullrich e a coalizão Juntos pela Mudança) e parte significativa dos votos do candidato regionalista Schiaretti, e de províncias importantes como Córdoba, Mendoza e Santa Fé. A prioridade dos argentinos nessa campanha por temas como corrupção (principal acusação aos peronistas) e, especialmente, inflação (mais de 100% ao ano no momento, sendo Massa o ministro da Economia) não ajudam o candidato do governo. Por outro lado, segue o medo a respeito de Milei e seus cortes de programas sociais, a percepção cada vez maior de ausência de equilíbrio emocional do candidato, e a máquina peronista funcionando. Aparentemente, o segundo turno vai ser decidido por uma margem pequena de votos.

Assim, ambos os candidatos estão jogando pesadamente com os medos da população. De um lado, Milei cola em Massa os rótulos da corrupção, da inflação acelerada e do governismo, em um quadro em que a maioria quer mudanças. De outro, Massa cola em Milei os rótulos do desequilíbrio emocional, da insensibilidade social e da associação com o macrismo (referência ao apoio que lhe é hipotecado pelo ex-presidente Macri e pela maioria da coalizão Juntos pela Mudança, afastada do segundo turno) – esse último ponto para tentar mostrar que o tal afastamento de Milei das forças tradicionais da política argentina, tão alardeado pelo candidato, é mais retórico do que real.

Uma coisa que pesou no primeiro turno, e deve voltar a pesar no segundo turno, é a máquina peronista. E aí, é fundamental entender a Argentina e o peso do peronismo, para visualizar as possibilidades. O peronismo pode alavancar votos na Província de Buenos Aires, como fez no primeiro turno, e isso pode ser decisivo. O outro ponto é a classe média da Cidade de Buenos Aires (a capital é autônoma, e concentra um setor muito importante de classe média) que é antiperonista, mas parece também assustada com o perfil autoritário de Milei, especialmente por suas declarações contra a democracia e contra a cultura.

Sobre o peronismo, sua influência vem de meados do Século XX, mais de setenta anos de história. O peronismo é suficientemente camaleônico para assumir várias roupagens ideológicas, podendo ir facilmente da direita à centro esquerda, mas com ao menos duas características que são permanentes: a vocação pelo poder (na história argentina, podem ser contadas nos dedos de uma mão, e ainda assim não se usariam todos, as derrotas eleitorais peronistas) e a organização da base mais pobre da população, seja o movimento sindical (onde as clivagens normalmente acontecem no próprio peronismo), seja entre os setores desorganizados. Daí o peso do peronismo na Província de Buenos Aires, base industrial, mas também da concentração da pobreza na Argentina.

O chamado peronismo é uma referência, um mantra batido pelos bumbos nas manifestações, uma lembrança de um passado mais abundante, a ideia de incorporação aos direitos sociais das grandes massas que se deslocavam do interior e que se somavam às levas de imigrantes que chegavam á Argentina desde o Século XIX. Nesse sentido, o peronismo tem muito de abstração, de sensação, mais do que de projeto político claro. Tem algo de nacionalismo, mas como vimos com Menem e as “relações carnais” com os EUA, o nacionalismo peronista pode ser bem relativizado.

É mais como uma tábua de salvação para a qual os argentinos correm em qualquer crise, mesmo as mais agudas, como no começo deste século, depois da crise com as sucessivas desvalorizações da moeda e o desespero do “que se vayan todos”, na saída de uma crise iniciada pelo peronismo menemista e sua política de “conversibilidade” entre o peso e o dólar estadunidense. Nesta crise, renasceu o peronismo kirchnerista, com o sinal trocado do peronismo menemista da década final do Século XX, e passado o governo de crise do radical Fernando de La Rua (não no nosso sentido por aqui, mas no sentido de um governo da União Cívica Radical, o outro partido forte enraizado no inconsciente argentino como opção, e que também é capaz de variações da direita à centro esquerda), o peronismo retornava com outra coloração.

Nesse momento, nem se consegue distinguir bem as cores do peronismo que vai para as urnas, já que, por um lado, o seu candidato (Massa) representa internamente um dos setores mais conservadores do peronismo, que inclusive há dez anos atrás disputava com o kirchnerismo. De outro, como se viu no primeiro turno, teve que contar com a massiva mobilização do peronismo mais progressista, exatamente na Província de Buenos Aires, para virar o primeiro turno eleitoral em primeiro lugar.

Sobre a classe média, setores que estavam na coalizão Juntos pela Mudança que se mostraram preocupados com a questão democrática e as ameaças autoritárias do candidato Milei manifestaram de diversas formas seu desconforto com a posição de lideres dessa coalizão, como Macri e Bullrich, de apoio ao candidato de extrema direita. Entretanto, a rejeição desses mesmos setores ao peronismo é imensa. A ver o que vai resultar. Talvez abstenção ou voto nulo, mas ainda vamos ter que ver essa resultante no final do processo do segundo turno.

Mesmo os setores empresariais se acham divididos, pois o principal parceiro comercial e de investimentos da Argentina há alguns anos é a China, e Milei promete afastamento em relação à China, o que pode ser mau para os negócios dessa turma, em especial o agronegócio argentino.

Aparentemente, a eleição está em aberto, e os resultados vão se desenhar mais perto da data do segundo turno, ou mesmo só no dia da eleição. Mas é uma decisão fundamental para a sociedade argentina e para o Mercosul (este último pode ser inviabilizado com a vitória de Milei) e qualquer que seja o resultado, deixará a sociedade argentina ainda mais fraturada, sabe-se lá por quanto tempo.

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Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
Leia também “Peronismo e lulismo“, de Valerio Arcary.