A frente política na Argentina e suas tensões políticas

Ilustração: Mihai Cauli

Com a substituição de seu chefe de gabinete, cinco ministros e o secretário de comunicação e imprensa, o presidente argentino Alberto Fernández relançou nesta segunda-feira, 20, o governo da Frente de Todos (FdT), após uma semana tensa de embates que abalaram a frente política [peronista] no poder, depois do golpe eleitoral de 13 de setembro.

Entretanto, nessas eleições não foi definido um só cargo. São meras primárias, para definir a composição das listas de candidaturas que serão apresentadas na eleição definitiva (em 14 de novembro próximo). Por que, então, a briga que manteve o país em suspense? E mais: por que falar em “derrota” oficialista?

Na Argentina, nas primárias (Primárias Abertas, Simultâneas e Obrigatórias, conhecidas como Paso) todos os eleitores votam. Elas têm o mesmo caráter obrigatório que qualquer outra eleição nacional e – com certa leveza, mas com grande convicção – geralmente são consideradas uma antecipação do resultado das definitivas.

O consenso dos especialistas, baseado em pesquisas muito imperfeitas dada a situação anômala imposta pela pandemia, dava por certo que a FdT obteria pouco mais de 40% dos votos, em torno de 43%, e que sua principal oposição, o macrismo, manteria os 40% que conseguiu nas eleições presidenciais de 2019.

(NR: a coligação Juntos por el Cambio, da oposição de direita, liderada pelo ex-presidente Maurício Macri, venceu em 18 dos 24 distritos do país. Obteve 41,5% dos votos).

Um esclarecimento: dizemos macrismo e não damos o nome de uma coalizão porque as coalizões hegemonizadas pelo partido Proposta Republicana (Pro), criado por Macri, são camaleônicas: já assumiram vários nomes ao longo de sua curta história, e até mudam de nome dependendo de onde seus candidatos são apresentados.

Voltando: embora a segunda previsão dos especialistas tenha se realizado, a primeira foi desmentida pela realidade: apenas 33% dos votos foram para a Frente de Todos. Isso possibilitou, para alguns (especialmente para alguns opositores contidos exultantes), o presságio de derrota da FdT nas eleições legislativas do próximo novembro.

Em números absolutos, o partido no poder perdeu seis milhões de eleitores entre as eleições presidenciais de 2019 e o Paso de 2021. A oposição perdeu dois milhões, mas manteve seu percentual devido à redução geral da participação (apenas dois dos três eleitores registrados votaram).

A vítima deste absenteísmo foi a Frente de Todos. Apesar dos temores de alguns analistas, esses números revelam um fato crucial da política argentina: o país não se “direitizou”. Não houve uma migração de eleitores da FdT para o macrismo. Sim, houve uma punição, que consistia em não votar, votar em branco ou anular o voto.

O resultado foi inesperado até mesmo para os opositores, mas não para alguns setores da FdT, cada vez mais convencidos de que com o aperto fiscal que estava impondo, o governo perderia as eleições.

Em particular, assim pensa a vice-presidente Cristina Fernández de Kirchner, a figura política que atrai mais votos na Argentina e sem a qual a FdT não poderia não apenas ter governado, mas sequer existir.

A punição eleitoral expôs, assim, uma tensão que veio de longe e afetou nada menos do que os dois principais pilares de apoio da coalizão governista. Essa tensão, que em outras circunstâncias teria sido processada em uma mesa de liderança coletiva da FdT, saiu a público e da pior maneira, porque a coalizão governamental carece desse mecanismo institucional elementar.

A Frente de Todos reúne vários partidos. Os principais, pelo peso eleitoral, são:

  • Unidad Ciudadana, dirigida por Cristina Fernández de Kirchner;
  • Partido Justicialista, presidido por Alberto Fernández, e
  • Frente Renovadora, dirigida pelo presidente da Câmara dos Deputados, Sergio Massa.

Entre os três, contêm o vasto espectro social do que poderia ser chamado de pan-peronismo real: todas as formações que se reconhecem como herdeiras do legado de Juan Perón e Eva Perón, que se recusam a se aliar às forças que representam o anti-peronismo histórico, cujo emblema é hoje o Pro, e que decidiram enfrentá-lo em bloco após a chamada feita por Cristina em 18 de maio de 2019.

Essencialmente aí convergem o empresariado de pequeno e médio porte, parte dos servidores públicos que o macrismo não conseguiu eliminar, trabalhadores assalariados, a maior parte da intelectualidade técnico-científica, trabalhadores da educação e da cultura, participantes de organizações sociais (excluídos de toda a atividade estável, que vêm crescendo desde que o neoliberalismo foi estabelecido na Argentina, mas que participam de diversas organizações de resistência) e, de forma frouxa, também trabalhadores independentes ou com renda oscilante de acordo com o nível de atividade econômica e as alternativas da oferta salarial sistêmica.

Destes e das organizações sociais, que são os estratos mais mergulhados na miséria pela ação destrutiva do agrarismo especulativo (hegemônico na Argentina desde 1955 e decisivo desde 1976 e 1989), a pandemia se abasteceu com especial fúria.

Na realidade, não se tratou apenas da pandemia. Desde sua derrota eleitoral nas Paso de agosto de 2019, Macri praticamente parou de governar. Entregou o comando e se amarrou a uma oposição de fanatismo extremista intransigente. Ao fazê-lo, buscava garantir que a dívida impagável e a destruição industrial que havia legado corroessem o governo da Frente de Todos.

Com o mesmo propósito inconfesso, quando eclodiu a pandemia de Covid o macrismo atacou as medidas de prevenção e proteção decretadas pelo governo federal, na esperança de que logo pudesse descarregar sobre o governo a responsabilidade pelo saldo de vítimas, como tentou fazer.

Enquanto isso, todos os esforços do governo de Alberto Fernández, desde 10 de dezembro de 2019 (e mesmo antes, dado o vácuo virtual de liderança que a deserção de Macri havia gerado) se concentraram em um programa econômico tendente a uma lenta, mas firme recuperação da atividade econômica com redistribuição gradual e positiva da renda.

Ao mesmo tempo, um amplo programa de apoio aos setores mais excluídos sustentaria essa população até que a reindustrialização (que tem sido muito bem sucedida: mesmo durante a pandemia, a atividade industrial superou em mais de dois dígitos percentuais os valores de 2018) reagisse e a reempregasse.

Politicamente, Alberto Fernández não poupou esforços para conseguir uma ampliação da frente política original, mas não encontrou eco em nenhum setor da oposição. O intransigente ultradireitismo de Macri parece ter intimidado outros adversários.

E foi aí que a pandemia entrou. Foi imperativo abandonar qualquer iniciativa não essencial do programa de recuperação econômica e o governo foi forçado a se concentrar em duas frentes: a renegociação da dívida impagável e fraudulenta com o FMI (mesmo em termos do Fundo) e a urgente reconstrução e expansão do sistema de saúde.

Esta última tarefa foi particularmente exigente. O macrismo destruiu o sistema de saúde com crueldade incompreensível para aqueles que não sabem ou esquecem que essa força política não só se recusa a completar o ciclo da verdade e da justiça pelos crimes de 1976 (começo da ditadura militar), mas também aplaude o bombardeio da Praça de Maio em 16 de junho de 1955, que deixou 300 mortos, entre eles várias crianças, e mais de mil feridos e aleijados.

Apesar de tudo, Alberto Fernández impôs o objetivo de que na Argentina não ocorressem as situações que atingiram Itália, Nova York, Peru, Equador ou Brasil, quando havia escassez de leitos de terapia intensiva e até oxigênio hospitalar. Se houvesse vítimas, elas teriam que dispor de um sistema de saúde que pelo menos lhes fornecesse todas as condições de tratamento necessárias para os efeitos do coronavírus. Esse objetivo foi alcançado. A prevenção, o confinamento, a reconstrução e o fortalecimento do sistema de saúde e o imenso esforço de vacinação, que a princípio parecia inatingível, colocaram a Argentina em uma posição invejável – 18º lugar no ranking de mortes por milhão de habitantes, em 2020.

Enquanto isso, a economia estava se recuperando.

O governo, apoiado em ambas as tendências positivas e agora cada vez mais claras, lançou-se confiantemente para a eleição preparatória, o Paso.

Mas essas tendências obscureciam outra, mais profunda, que terminou na punição que o oficialismo recebeu no passado domingo 13: o ataque permanente da mídia e a pregação dos operadores jornalísticos do macrismo conseguiram penetrar em algumas consciências, mas dano muito maior causou a continuidade da inflação, centrada nos artigos alimentares, que atacou precisamente aquele estrato de débil adesão à FdT, que de repente se viu jogado na miséria, pobreza e indigência pelas consequências econômicas da pandemia.

Cristina havia alertado Alberto em várias ocasiões sobre o risco de não ganhar as eleições. Alberto não acreditou nela. Após a eleição, e depois de um período que ela considerou prudente, ocorreram dois eventos dramáticos. Nas províncias decididamente cristinistas de Santa Cruz (local de origem dos kirchneristas, onde a governadora é Alicia Kirchner, cunhada de Cristina) e Buenos Aires (um bastião do kirchnerismo sob o governador Axel Kicilioff), secretários kirchneristas (todos) começaram a renunciar aos seus cargos. No dia seguinte, os ministros kirchneristas do gabinete nacional também renunciaram. Só eles. Os ministros que respondem politicamente a Alberto Fernández ou a Sergio Massa permaneceram. Naquele momento, a crise eclodiu.

Ao mesmo tempo, Cristina divulgou uma carta aberta na qual apontou as razões que, a seu ver, foram motivos para a derrota eleitoral, e o que ela considerava ser os caminhos para superá-la e, se possível, revertê-la. Essencialmente foi o programa que hoje é personificado, de fato, nos ministros que ficaram no poder como resultado da substituição. Mas Alberto considerou que não podia admitir que Cristina usasse esse método para dobrá-lo.

Isso, por um lado, deu força à oposição furiosa. Um dos seus cavalos de batalha é a ideia de que o presidente é um fantoche de Cristina. Isso já era sério. É tradição oligárquica enfraquecer presidentes de origem popular, a fim de manipular ou se livrar deles.

Por outro lado, sentiu que se ele se submetesse à rebelião repentina, os setores não cristinistas romperiam com a Frente de Todos. E se a frente fosse rompida, o retorno do macrismo seria inexorável.

Dois ou três dias frenéticos de negociações conseguiram salvar a Frente de Todos e reorientar o governo para cumprir o que era exigido pela carta de Cristina (que não era, aliás, mera “opinião” de Cristina. O chefe de gabinete da Província de Buenos Aires, Carlos Bianco, havia afirmado várias vezes que comemoraria se a FdT ganhasse as eleições mesmo por um ponto percentual).

Resumindo, tudo pareceria um baile à beira do abismo. Poderia se dizer um parto da montanha. Hoje a Argentina tem uma reorientação do programa de governo, com ministros capazes de levá-lo aos lugares necessários e, ao preço de algumas demissões forçadas bastante injustas (como o caso do ministro das Relações Exteriores, Felipe Solá), com um novo equilíbrio dentro da FdT.

O governo espera não só recuperar votos, mas, supõe inclusive que será capaz de reverter os resultados da eleição primária. Tomara que isso aconteça.

A verdade é que as dificuldades organizacionais da Frente de Todos podem colocar nosso sistema nervoso em suspense muito mais vezes.

(Tradução por Paulo de Tarso Riccordi, não revisado pela autor)

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