A esquerda e o kirchnerismo não estão dando a devida importância ao risco da extrema direita na Argentina de 2023 

Resenha do artigo “El momento político de la lucha de clases”, de Martín Mosquera

Martín Mosquera publicou um dos artigos mais claros sobre as eleições na Argentina. O autor, que é graduado em filosofia, professor na Universidade de Buenos Aires e editor da Jacobin Latin America, produziu um texto coeso e inteligente, que começa assim: “… a extrema direita chegou às portas do poder. O que parecia impossível, agora parece inevitável…”.

Esta resenha preocupou-se em dar spoilers do artigo, mas de forma alguma traz a riqueza do original.

No plano político, a ascensão de Javier Milei é a ponta de um iceberg. Ou, como afirma o autor, sua erupção está relacionada com a crise do peronismo, “um corpo celeste em torno do qual orbita o sistema político argentino desde 1945”.  Um pilar importante de sua tese se apoia na definição do peronismo como algo mais amplo do que um partido, que pela primeira vez pode perder a maioria no Senado e alguns governos locais importantes. A crise do peronismo, dada a sua magnitude, em certa medida se transforma numa crise do próprio Estado. O país que tinha apenas quatro por cento de pobres na década de 1970, hoje tem 40%. A direita “tradicional”, que se preparava para receber em seus braços a próxima presidência, como seria o curso “normal” dos acontecimentos, está mais próxima de uma crise interna do que ser governo. O contexto argentino é o de uma crise “orgânica de estado” (Gramsci), que depois de fracassada a “terapia de choque neoliberal”, pode caminhar para uma saída “cesarista” (Gramsci) que consiga “desbloquear o empate social” mediante uma solução de força.

Na avaliação de diferentes escolas econômicas, a crise argentina foi agravada porque não foi feita a reestruturação capitalista, em parte porque o movimento trabalhista conseguiu impedir. A inadequação às transformações mundiais dificultou ainda mais os ajustes macroeconômicos.

A deterioração da vida material da classe trabalhadora afetou o peronismo e gerou um “mal-estar social” que se transformou numa “crise geral de representação”. O peronismo sempre serviu como um estabilizador nas crises, agora, ele mesmo em crise, abriu a porta para uma crise maior. Esta é mais uma razão para o autor achar provável uma ruptura radical da ligação entre representantes e representados.

Javier Milei

As primeiras análises avaliaram a irrupção de Milei como um voto de protesto, o que é parte da explicação. Outra razão foi a proposta peronista de descasamento das eleições nacionais e regionais, por acreditar que assim enfraqueceria a direita “tradicional”. Ninguém acreditava, mas Milei conseguiu penetrar em setores populares que nunca haviam sido alcançados pela direita tradicional. Como diz o autor: “Não estamos lidando unicamente com um mal-estar que irrompe com formas aleatórias, estamos diante da metabolização reacionária deste mal-estar.”

Javier Milei propõe a completa eliminação do Estado. Ele aparece como uma alternativa após os fracassos das políticas neoliberais durante governos peronistas, ou não peronistas.

O cenário onde se move o autodeclarado anarcocapitalista é uma Argentina com um terço dos eleitores com perfil ultradireitista – um platô inicial alto num processo eleitoral, um terço com orientação neoliberal clássica e os restantes apoiando a continuidade.

Um governo Milei é inevitável?

A Frente de Esquerda (FIT-U) subestima o risco Milei, julgando que o candidato não tem apoio político para sustentar-se diante das mobilizações populares. Para Mosquera, essa previsão perigosa é  “uma estratégia mesquinha e irresponsável” da esquerda, que considerara os reformistas ou progressistas como os grandes inimigos a serem derrotados, não a extrema direita. Foi com esta que o Partido Socialista dos Trabalhadores, um dos partidos da Frente, defendeu o voto nulo nas recentes eleições na América Latina: Lula contra Bolsonaro, Castilho contra Fujimori e Boric contra Kast.

Um eventual governo Milei talvez seja frágil e talvez tenha uma resposta social de grande amplitude. No entanto, há muito mais incógnitas do que certezas; “… numa situação tão incerta como a atual, ninguém pode ter certeza sobre o futuro (…) Neste contexto crítico, não é racional assumir riscos desnecessários.” Entre outras razões, porque a implementação de políticas tão pouco populares sugere que virão junto com a necessidade de um endurecimento autoritário e uma grande regressão social e democrática.

Não é impossível que Javier Milie tente repetir o sucesso clássico thatcherismo, que não precisou da adesão da maioria da população no ataque ao Estado social, bastou o consentimento, a resignação, a apatia e o desafeto.

Uma saída “cesarista” ao empate social

Se nos últimos 20 anos houve um “empate hegemônico”, um impasse entre as forças sociais causado pelo imobilismo pode ser superado pela combinação de uma catástrofe econômica com autoritarismo político – “empate catastrófico” (Gramsci). O empate entre forças políticas, disse Gramsci, em uma situação história completamente diferente, gera condições para o surgimento de uma liderança alternativa com consequências desastrosas para as forças imobilizadas, de tal forma que se encerre com a destruição recíproca.

A situação atual é bem diferente daquela do golpe militar de 1976. Para a vitória da extrema direita, diz o autor, “pode ser útil um ‘louco’, com pouco passado e sem medo do futuro e sem apoios que exijam políticas sustentáveis, para desatar o nó que bloqueia o capitalismo argentino há duas décadas.”

O que fazer?

A singularidade das próximas eleições é que a esquerda enfrentará duas formações de extrema direita, o que pode levar, inclusive, a uma vitória de Milei no primeiro turno. Desta vez, não se trata apenas de atuar em conjunto com as classes populares contra a direita tradicional representativa das classes médias antipopulistas. Agora, são as classes populares que estão reagindo aos ajustes do peronismo.

Mosquera é categórico: “Apoiar o neoliberalismo progressista contra a extrema direita equivale a apoiar a causa para tentar evitar o efeito”. Embora possa parecer um paradoxo, “há momentos críticos que demandam ações pontuais para lidar com a causa e o efeito”.

Didaticamente, o autor reproduz a imagem construída por Trotsky no período de surgimento do fascismo: “Para que compreendam, usemos de um exemplo mais: Se um dos meus inimigos me envenena todos os dias com pequenas doses de veneno e outro quer me dar um tiro por trás, primeiro eu arrancarei o revólver das mãos do segundo, o que me dará oportunidade de terminar com o primeiro.”

Resta, no entanto, um grande problema. As forças políticas capazes de responder à extrema direita não parecem interessadas em cumprir esse papel. A Frente de Esquerda está focada em sua própria campanha eleitoral.

O peronismo de Cristina Kirchner, por sua vez, está ausente. Como em 2015, parece mais interessado em ganhar a Província de Buenos Aires e apostar, de forma irresponsável, num eventual retorno pós-governo de ultradireita. Tudo sugere que prefere a vitória da extrema direita, que lhe traria de volta o controle do peronismo e traria de presente o governo.

Se a luta contra Milei ficar reduzida às correntes de apoio à Massa e ao oficialismo, a derrota é provável. E o autor, citando a experiência de Lula, considera indispensável a formação de um movimento social democrático, seja para derrotar eleitoralmente a extrema direita, seja para as batalhas sociais e políticas na defesa da democracia, em caso de derrota eleitoral. (Clique aqui para ler o artigo de Martín Mosquera publicado no Jacobin)

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
Domingo 08/10/2023 21 horas: clique aqui para assistir o segundo debate eleitoral entre os candidatos à presidência na Argentina.

Leia também “Os dilemas da esquerda diante das eleições da Argentina“, de Claudio Katz.
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