Argentina: vamos ao segundo turno
No último artigo, falávamos da encruzilhada eleitoral em que se meteu a Argentina. A encruzilhada se concretizou, mas não sem surpresas. De acordo com o que apontava a maioria das pesquisas antes do primeiro turno, os candidatos Massa e Milei iriam para o segundo turno. Mas, ao contrário do que elas apontavam, Massa passou em primeiro, Milei em segundo e a candidata Patricia Bullrich ficou em um distante terceiro lugar.
Mais do que isso: com os resultados eleitorais finais (Massa: 36,7%, Milei: 30%, Bulrich: 23,8%, Schiaretti: 6,8% e Bregman: 2,7%), Massa ficou a apenas 3,3% de ganhar no primeiro turno. Pela legislação federal argentina, um candidato vence se conseguir 45% dos votos, ou 40% com 10% de vantagem sobre o segundo colocado. Com mais 3,3% de votos para Massa, essa segunda hipótese se concretizaria.
Vamos, assim, para o segundo turno em 19 de novembro. Dado que surpresas aconteceram tanto nas PASO (primárias), quando Milei ganhou, o que não era esperado, quanto no primeiro turno, quando Massa ganhou bem, o que tampouco era esperado, o que podemos esperar do segundo turno eleitoral por lá?
Duas coisas serão decisivas.
A primeira é a capacidade de mobilização de eleitores. Apesar de a abstenção ter sido alta, o fato é que houve uma redução significativa dela entre as primárias e o primeiro turno (segundo o sítio web oficial resultados.gob.ar, que pode ser consultado, a participação eleitoral nas PASO foi de 69%, enquanto no primeiro turno chegou a cerca de 78%) – e aparentemente por um enorme esforço da estrutura peronista, em especial na Província de Buenos Aires, onde vota cerca de 40% do total de eleitores argentinos. Além de reelegerem para governador o kirchnerista Axel Kicillof no primeiro turno, eles contribuíram para anabolizar a candidatura presidencial de Massa. Não se tem ideia de quanto espaço ainda existe para a mobilização de eleitores, mas o que for mobilizado aparentemente ajudará mais o candidato peronista.
A segunda é o que vai acontecer com os votos dos candidatos que não foram para o segundo turno, que devem se dividir entre um dos dois candidatos, ou ainda se decidir pela consigna “nem um, nem outro”. E aqui vale também o esforço que os candidatos que seguem na corrida eleitoral têm feito para aumentar a rejeição a seu opositor. De qualquer forma, é de se esperar que Massa herde a maior parte dos cerca de 9,5% dos votos que foram no primeiro turno do candidato das forças regionalistas (Schiaretti) e da extrema esquerda (Bregman) – de novo lembrando que dentro dessas forças também haverá chamamentos para o voto nulo. Entretanto, esse movimento já aproximará Massa da vitória, lembrando que Milei, que saiu atrás, não é beneficiado pelo voto nulo. Ele precisa que votem nele, para reduzir a diferença e passar à frente.
Mas a chave é entender o que vai se passar com os quase 24% de votos que foram para Bullrich. É aí que está o centro da disputa. Apesar de ser uma coalizão de muitas forças políticas, três delas darão o tom dessa definição dos votos que no primeiro turno se dirigiram à candidata de Juntos pela Mudança: o PRO (Proposta Republica), partido liderado pelo ex-presidente Macri, a velha União Cívica Radical (UCR), partido antigo e com forte organização em todo o país, e a chamada Coalizão Cívica, que tem como uma de suas principais lideranças a ex-deputada e ex-candidata à presidência Elisa Carrió.
A Coalizão Cívica está definindo sua posição, mas Carrió, sua principal liderança, desde que se definiu o segundo turno entre Massa e Milei, tem defendido a ideia de “nem um, nem outro”. É possível que essa posição seja a desse grupo, embora este seja provavelmente o menor dos grupos dentro desse espectro.
As lideranças da UCR, até aqui, estão flertando com Massa, que tem apelado a este setor com sucesso, desde que saíram os resultados eleitorais.
Entre as lideranças do PRO, muitas feridas e muitos ajustes de contas. O setor que mais tem sinalizado proximidade com Milei é o de Macri – que, por outro lado, enfrenta duríssimas críticas de todos os outros setores do PRO e da coalizão Juntos pela Mudança, por aparentemente não ter jogado todos os seus esforços para viabilizar a candidatura de Bullrich. Ela mesma não se manifestou logo na sequência das eleições (levou três dias para anunciar o apoio a Milei), e vale lembrar que a sua vitória nas primárias sobre o prefeito da cidade de Buenos Aires, Horacio Rodríguez Larreta, não se deu sem feridas.
Evidentemente, o discurso antiperonista em geral, e antikirchnerista em particular, terá uma forte capacidade de influenciar as decisões dentro desse setor político da aliança Juntos pela Mudança, mas não deve ser um processo simples, e não se dará sem defecções. Entre alguns desses setores, o discurso contra a democracia e os partidos tradicionais de Milei encontra forte resistência. Até mesmo Bullrich foi fortemente atacada por Milei durante a campanha do primeiro turno, onde teve seu passado montonero (setor peronista que participou da luta armada na Argentina) lembrado e atacado pelo candidato da extrema direita, e isso deve deixar ressentimentos.
Assim, provavelmente não teremos uma posição uniforme das forças que compuseram a frente Juntos pela Mudança nas eleições. Elas devem de fato se dividir, o que é confortável para o candidato Massa, que desta forma pode “pescar” uma parte desse eleitorado.
Vale lembrar que, de fato, nenhum dos principais candidatos era de esquerda, de modo que tentativas de clivagem ideológica, embora devam ser tentadas, não encontram muito fundamento. Milei é de extrema direita, Bullrich representava o que de mais conservador havia na direita tradicional, e Massa representa o setor mais conservador do peronismo (em 2015, por exemplo, rompido com o kirchnerismo, constituiu uma alternativa “de centro” para disputar as eleições contra Daniel Scioli, pelo peronismo, e Maurício Macri, pelo PRO).
Os dois candidatos que passaram no primeiro turno já estão elaborando suas estratégias para o segundo turno.
Massa, aparentemente, seguirá batendo nos efeitos práticos dos cortes de gastos propostos por Milei sobre a população mais pobre (discurso que pode servir à máquina e lideranças peronistas para conseguir fazer mais gente ir às urnas, especialmente na Província de Buenos Aires, mas não só aí, mobilizando a população mais pobre e dependente dos programas sociais que podem ser cortados), assim como nas propostas absurdas apresentadas por Milei, na defesa da democracia e de um governo de união nacional.
Milei deverá abrandar seu discurso contra os políticos tradicionais (que ele chama de “casta”) para tentar angariar apoios, e subir o tom no discurso anticorrupção e contra o kirchnerismo, tentando avançar no eleitorado que votou em Bullrich.
A ver os resultados, em algumas semanas. Como dito em artigos meus anteriores por aqui, esses resultados são fundamentais para o Brasil e as possibilidades de avançar a integração regional no Mercosul e na América Latina.
***
Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
Leia também “Os rumos truncados da Argentina“, de Cézar Augusto Miranda Guedes.