Argentina

Apresentação do artigo “Os enigmas da Argentina”, de Claudio Katz

Com o fim da Segunda Guerra Mundial e a derrota do nazifascismo, o mundo ingressou num período marcado pelo otimismo em relação ao futuro, numa perspectiva de autodeterminação dos povos, fim do colonialismo e expansão das liberdades democráticas. Mas é bem verdade que as bombas nucleares sobre Hiroshima e Nagazaki, pondo fim à guerra, podem ser entendidas como um dos primeiros capítulos da guerra fria, já que era uma demonstração inédita de força para os presentes e futuros oponentes dos EUA.

No caso da América Latina, as elites políticas locais já tinham atingido sua maioridade desde o século XIX, com os processos de independência e a criação de Estados nacionais. Entretanto, na prática, o que prevalecia era a subordinação aos centros hegemônicos e à lógica da divisão internacional do trabalho no contexto do capitalismo internacional.

Na visão da CEPAL (Comissão Econômica para América Latina e Caribe), criada em 1948 como uma das agências da ONU, a América Latina fazia parte de uma vasta e ampla periferia produtora de matérias-primas e alimentos, frente a um pequeno número de nações desenvolvidas e industrializadas. Como não havia exemplos de países desenvolvidos sem uma base industrial relevante, a linha de elaboração da CEPAL foi construída no sentido de propiciar a integração econômica, assim como um segmento urbano / industrial e de serviços que promovesse o aumento da produtividade no conjunto de nossas economias, abrindo a possibilidade de uma inserção mais soberana no contexto internacional.

Numa linguagem da teoria econômica: ganhos de escala pela integração e uma matriz produtiva mais integrada e diferenciada, fortalecendo a inclusão produtiva e social viabilizada pelo desenvolvimento econômico. Sem essa base produtiva mais sofisticada, nossas economias viveriam à sombra da “deterioração dos termos de troca”, uma das principais contribuições do pensamento cepalino à teoria e política econômica, mostrando que o índice de preços de nossas exportações estaria tendencialmente perdendo valor frente ao preço das importações.

Esse entendimento se chocava frontalmente com a “lei das vantagens comparativas”, base das teorias dominantes sobre economia internacional onde, supostamente, todos os países ganhariam no comércio internacional, uma vez que comercializassem o que produzissem com maior eficiência e custos menores. Uma boa teoria e adequada aos interesses dos países centrais, com suas empresas na frente da corrida pelas inovações, com ciência e tecnologia que lhes desse suporte, pois congelava os diferenciais de poder com relação aos países periféricos. Essas eram as regras do jogo e o jogo das regras.

É bem verdade que desde a crise de 1929 e suas derivações, as fissuras na velha ordem foram aparecendo e abrindo espaços favoráveis às inovações e novas institucionalidades, enquanto a ortodoxia econômica ia perdendo terreno na elaboração e implantação de políticas econômicas tanto nos países centrais como na periferia capitalista. Um bom exemplo desta tendência foi o New Deal, no governo de Franklin Roosevelt.

Com a guerra, o pós-guerra e a necessidade do planejamento em vários âmbitos, o cenário mudou completamente. Assim é que, no decorrer das décadas de 30 e 40 do século passado, são lançadas as bases de novas formas e práticas de governo que assumem novas funções, cada vez mais voltadas às iniciativas anticíclicas, assim como para a formação de economias e sociedades urbanas e industriais ao mesmo tempo em que o aparato jurídico / político reconhecia novos atores sociais e os direitos sociais e trabalhistas foram tomando forma. Isso vale particularmente para a Europa e os EUA. No caso de nosso continente, esse percurso foi marcado por avanços parciais, retrocessos e retomadas com possibilidades truncadas. Esse movimento pendular viria a marcar a dinâmica e os rumos do continente latino-americano. Afinal, como fazer as reformas necessárias?

O drama (ou tragédia?) de nosso continente é que simultaneamente a essas transformações promissoras, havia a guerra fria com sua lógica implacável, na qual a questão nacional, as conquistas sociais e os direitos trabalhistas eram entendidos como algo perigoso. Nessa perspectiva, as reformas suscitadas pela CEPAL seriam algo a ser reduzido ou mesmo apagado, pois se tratava de um de cavalo de Troia, levando em seu ventre uma “hidra vermelha”. Para quem tem memória: o bombardeio da Casa Rosada pela Força Aérea argentina em 1955; o suicídio de Getúlio Vargas que adiou o golpe por dez anos; assim como outro bombardeio, esse pela Força Aérea chilena sobre o La Moneda em 1973, são golpes de Estado aplicados sobre governos eleitos democraticamente e têm nesses impasses boa parte de sua explicação.

O texto “Os enigmas da Argentina“, do professor Claudio Katz, da Universidade de Buenos Aires, abrange um período de quase 80 anos que se inicia no imediato pós-guerra, com a primeira eleição de Perón, até as eleições argentinas neste ano de 2023. São, portanto, quase 80 anos de informação e análise da economia e da sociedade, onde as possibilidades e agruras argentinas são ali examinadas num raro esforço de síntese, que aborda os cinco governos peronistas (no poder pelos processos eleitorais) nas suas profundas distinções, um espaço político próprio, quase uma galáxia.

São também analisados os golpes de Estado deste período e a retomada da democracia, com a eleição de Raul Alfonsin, da União Cívica Radical (UCR) e as dificuldades de conquistar uma realização mais substantiva no sentido de uma sociedade democrática, onde o acesso à moradia, ao trabalho decente, à educação e saúde sejam bens garantidos à cidadania.

Por fim, são destrinchados os problemas do passado recente e os cenários sob a perspectiva do campo progressista, suas possíveis alianças e disjuntivas frente às candidaturas que estão colocadas.

Sobre a Argentina, leia: “Argentina: um governo Javier Milei é inevitável?”, resenha de Eduardo Scaletsky e “Os dilemas da esquerda diante de Javiel Milei“, de Claudio Katz.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
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