A história, a geografia, a economia e uma dose de acaso uniram os destinos de Argentina e Brasil. Ou se viabilizam mutuamente ou afundarão num papel subordinado, próximo da irrelevância no cenário mundial.

A Argentina é o oitavo país do mundo em extensão e Brasil é o quinto. Somente a Rússia possui território maior que Argentina e Brasil juntos, que ocupam quase toda a costa do Atlântico sul. A extensão do Brasil corresponde à América portuguesa, que não se desintegrou, ao contrário da América espanhola, que se fragmentou em 19 países.

No âmbito da geopolítica, a extensão do território, o tamanho da economia e a população são os fatores que constituem o poder potencial dos países. O poder efetivo tem a ver com a capacidade científico-tecnológica, monetário-financeira e militar. A defasagem entre as duas esferas de poder é denominada hiato de poder. A integração, em suas diferentes modalidades e dependendo de sua condução, pode contribuir para aumentar o poder efetivo dos países membros alavancando sua inserção num mundo cada vez mais interligado. A criação do Mercosul teve inspiração explícita na União Europeia (UE). Em razão disso, mas não só, o texto faz contrapontos com a experiência europeia.

A ideia e o sentimento do europeísmo são anteriores ao processo de integração iniciado com a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA) em 1952 e aprofundado com a Política Agrícola Comum em 1957, mesmo ano do Tratado de Roma, que estabeleceu a Comunidade Econômica Europeia (CEE). Foi preciso a experiência trágica de uma carnificina em escala industrial, para que a opção pela paz, cooperação e desenvolvimento, tomasse o lugar das guerras e das xenofobias que marcaram a história da Europa. Uma ilustração desse passado está nos hinos dos países europeus que, em sua quase totalidade, têm sangue, canhões e armas nas suas letras.

No caso da América Latina, também estiveram presentes ideias e sentimentos de integração, a começar pela Pátria Grande sonhada por Simon Bolívar, assim como outras experiências em curso. Aqui se trata apenas do Cone Sul, mais especificamente, da relação Argentina – Brasil.

Já aconteceram entendimentos e construções que poderiam ter resultado em processos institucionalizados de acordos. Mas por questões domésticas e de geopolítica global, essas aproximações foram intermitentes. Foi a partir de uma guerra, a das Malvinas, em 1982, que o quadro mudou e se iniciou um processo de integração.

Um aspecto relevante da história econômica de ambos os países foi que as economias não competiam entre si quanto a produtos exportados ou destinos das exportações. A Argentina exportava lã, cereais e carne para a Europa, particularmente Inglaterra, enquanto o Brasil exportava café, cacau e látex (durante o breve auge na virada do século XIX para o XX) para os EUA. Em tese, isso deveria facilitar o entendimento. Mas a partir dos anos 80 esse quadro mudou. O principal segmento no comércio bilateral passou a ser o automotivo, que reflete o comércio intrafirmas, tendência crescente da economia internacional nas últimas décadas; a FIAT e a Volkswagen têm fábricas em ambos os países e comercializam partes e componentes, além do produto final. Outra mudança significativa foi que a China tornou-se o principal parceiro comercial para os dois países.

Entretanto, as marcas na história da relação entre Argentina e Brasil foram de rivalidades e desconfianças mútuas, o que lembra França e Alemanha até o fim da Segunda Guerra Mundial, embora sem os confrontos armados. Em alguns momentos predominou o entendimento, como no caso do Barão do Rio Branco com os presidentes da Argentina e do Chile para formar o Pacto ABC. A ênfase da aliança era a segurança interna dos três países signatários. Aconteceram outros ensaios durante os governos de Perón e Getúlio, interrompidos por iniciativas golpistas. No caso brasileiro, em 1954, o golpe foi suspenso pelo suicídio de Getúlio e na Argentina consumado em 1955 pela “revolução libertadora”, que depôs Perón. O ponto alto dessas tentativas de cooperação se deu logo após, nos governos de Arturo Frondize e JK, seguido por Jânio Quadros, mas interrompido novamente pelo golpe na Argentina em 1962 e no Brasil em 1964.

As décadas de 1960 e 1970 foram marcadas por golpes na América Latina, que tinham muito a ver com a lógica da guerra fria, aguçada pela pressão dos EUA em isolar Cuba, mais do que por questões internas. Era preciso impedir experiências terceiro-mundistas ou pragmáticas de não alinhamento.

Nos governos dos generais Castelo Branco e Ongania também foi discutida uma União Aduaneira. Mas havia desde sempre algumas questões pendentes, principalmente a tensão pela utilização dos recursos hídricos da Bacia do Prata, que só começou a ser equacionada ao final dos anos 70.

Foi a partir da Guerra das Malvinas em 1982 que a integração Argentina – Brasil ganhou consistência e institucionalidade. A derrota da Argentina foi um duro aprendizado de geopolítica, no qual a OEA (Organização dos Estados Americanos) se esvaziou, pois os EUA, assim como a Europa em geral, apoiaram a Inglaterra. Pouco depois, no contexto da redemocratização em ambos os países, os presidentes Alfonsin e Sarney assinaram o Programa de Integração e Cooperação Econômica em 1986, facilitando acordos setoriais para aumentar o comércio bilateral através de concessões tarifárias em setores como bens de capital, trigo e automóveis, assim como mecanismos para a cooperação tecnológica. Em 1988, foi assinado o Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento visando formar um mercado comum em dez anos. Em 1991, com a adesão do Paraguai e do Uruguai, celebrou-se o Tratado de Assunção, que teve como resultado o Mercosul. Estava criado o divisor de águas.

Desde sua formação em 1948, a Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL) se constituiu num espaço fundamental de discussão e elaboração de políticas para o continente, no qual a integração econômica sempre esteve em pauta. Houve uma evolução no entendimento inicial que se estendeu até a entrada dos anos 90, em que se tratava de um “regionalismo fechado”, dando suporte ao processo de substituição de importações. A partir de 1990 se elabora a concepção de um “regionalismo aberto”, correspondendo a uma concepção posterior à prática da substituição de importações e buscando na integração dos países uma melhor inserção das economias latino-americanas na economia global, com a formação de diversos esquemas regionais integracionistas direcionados ao incremento do comércio e do investimento.

Há também outra questão: enquanto a experiência europeia teve o apoio estadunidense na sua origem, no caso do Mercosul foi diferente. Desde a doutrina enunciada em 1823 pelo presidente Monroe, a aparente ambigüidade da “América para os americanos” foi na verdade um claro aviso para as potências europeias de que todo o continente americano deveria estar fora da cobiça europeia e sujeito ao “destino manifesto” dos EUA. Portanto, desde que a doutrina Monroe foi enunciada, várias iniciativas se deram no sentido de fazer das Américas uma área de livre comercio. A ALCA foi a mais recente dessas iniciativas e o Mercosul cumpriu um papel inconveniente para os EUA nesse sentido, pois representava um entrave à integração hemisférica sob hegemonia estadunidense.

Os processos de integração, da mesma forma que qualquer outra construção política, não evoluem linearmente. Há idas e vindas, momentos de pausa e às vezes retrocessos, já que estão sujeitos a vários condicionamentos. Assim foi com a construção europeia, impactada negativamente pela crise do petróleo nos anos 70. Mas há momentos de saltos, como foi o Tratado de Maastrich em 1992, quando os países membros da CEE decidiram criar a UE e o Euro, a moeda única, que teve de ser antecedida pelos critérios de convergência.

No caso do Mercosul, houve retrocessos, mas também avanços, o mais visível deles foi o aumento no comércio e no investimento intra bloco e do bloco com o resto do mundo. Aliás, um fato curioso foi a declaração do futuro ministro da Economia brasileiro, em outubro de 2018, e reiterada após a posse do governo, em janeiro de 2019, no sentido de que “o Mercosul não será prioridade do governo”. Mas apenas cinco meses depois, em maio de 2019, a realidade mostrou a importância do comércio com a Argentina, cuja crise provocou uma importante queda no saldo positivo da balança comercial no primeiro quadrimestre de 2019.

O problema das declarações peremptórias na diplomacia em geral, e na econômica em particular, é que atrapalham a consolidação dos vínculos e prejudicam a criação e circulação de riqueza, trabalho e renda. Se na assessoria do ministro há algum leitor de Eça de Queiroz, o Conselheiro Acácio deve ter sido lembrado numa de suas assertivas óbvias e sempre verdadeiras: “o problema das conseqüências, é que elas vêm depois”.

Para conhecer a história econômica argentina, há um autor fundamental: Aldo Ferrer (1927/2016), o mesmo que Celso Furtado (1920/2004) para o Brasil. Ambos foram economistas, homens públicos e professores da mais alta qualidade. Pensaram e trabalharam a América Latina e seus dilemas de forma abrangente. Em sua fértil contribuição, um dos pontos analisados pelo professor Ferrer diz respeito à “densidade nacional”, que é inclusive o nome de um de 9eus livros. Basicamente tem a ver com acreditar e acionar as próprias forças da nação. Na mesma linha, o professor Furtado definia desenvolvimento como a capacidade de ser dono do próprio destino. Para ambos, o desenvolvimento econômico era indissociável do social. Essa deve ser a perspectiva de construção do Mercosul, com vontade política na construção de políticas estruturantes e um crescimento inclusivo que signifique uma vida melhor para todos.