Na abertura dos anos 1990, Pierre Bourdieu publica a pesquisa A miséria do mundo. A brochura de capa dura, para que o signo da miséria não se convertesse na miséria do signo, vira best-seller com 80 mil exemplares vendidos. Destrincha a “miséria de condição” dos subalternos no capitalismo e a “miséria de posição”, o lugar específico dos atores sociais no subespaço de pertença. “Estabelecer a grande miséria como medida exclusiva de todas as misérias é proibir-se de perceber e compreender os sofrimentos característicos da ordem social e o desenvolvimento de todas as formas da pequena miséria, onde se acham os elementos que ajudaram na formação de cada personalidade”. Pois é.

O sociólogo do Collège de France avança sobre as engrenagens de individualização resultantes da experiência do sofrimento com uma metodologia, um “exercício espiritual”, que busca a intersecção da sociologia psicanalítica com a psicanálise sociológica. Surge um novo horizonte cognitivo. Jessé Souza, em A ralé brasileira, segue o saudoso mestre. “Procurei utilizar o mesmo procedimento para explicar a existência das classes marginalizadas, entre nós, e escapar das ingenuidades da empiria”.

Christian Dunker trilha caminho similar, em Reinvenção da intimidade: Políticas do sofrimento cotidiano. “Sofrer é algo que depende de três condições: a narrativa na qual está inserido; os atos de reconhecimento que fixam sua causa e a transitividade que o torna uma experiência coletiva e indeterminada. A forma como contamos, justificamos e partilhamos nosso sofrimento está sujeita a uma dinâmica de poder”. No divã, as vítimas do sofrer expõem a sua tortura e as pesadas estruturas de dominação social. Significa que a política circula entre o público e o privado. Fica impossível à sensibilidade distinguir a divisória que separa o sofrimento psíquico do sofrimento sociológico.

O sofrimento deixa de ser puramente individual, posto que expõe os vários sintomas sociais. Neste carrossel, a angústia existencial da geração de 1968 frente à probabilidade de perder os empregos para a robótica, na França, sublimou-se em uma luta contra la société du spectacle e o paradigma da mercadoria. Enquanto o ressentimento e o ódio à condição de subalternidade, agora, converte-se no apoio às governanças protofascistas que propagam em ambos os hemisférios a aporofobia e a exclusão.

Invernos e desencantos

Ontem, a ex-URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) incrementou o afeto da suspeição. O Prêmio Nobel Alexander Soljenítsin, autor de Arquipélago Gulag, foi condenado sem julgamento a oito anos de prisão e mais quatro de exílio numa remota aldeia. O motivo: uma carta enviada a um amigo, em janeiro de 1945, quando servia como capitão de artilharia do Exército Vermelho no front de Koenigsberg, a cidade natal de Kant. A missiva criticava os privilégios no Exército e a conduta de Stalin, na Segunda Guerra. Suas acusações antecipavam as de Khrushchov. Só foi reabilitado invernos e desencantos depois. Sem a atmosfera persecutória do stalinismo, a história seria outra.

Hoje, o declinante imperialismo dos Estados Unidos dissemina o afeto do hiperindividualismo e o sentimento antiestatal em prol de um livre mercado, sem compromisso com a inserção social e as prerrogativas trabalhistas. Mais: os fins de corporações com receitas muito superiores às de países avalizam os instrumentos espúrios do lawfare, para atacar a reputação de governantes nacionalistas reticentes ao capital predador, na América Latina: Fernando Lugo / PY, Rafael Correa / EC, Evo Morales / BO, José Mujica / UY, Hugo Chávez e Nicolás Maduro / VE, Cristina Kirchner e Alberto Fernández / AR, Dilma Rousseff e Lula da Silva / BR. A pantomima oculta os interesses de fundo.

Afetos de solidariedade e empatia com a dor das individualidades e coletividades são entorpecidos pelas leis do Estado (vide a Terceirização). O filme dos irmãos Joel e Ethan Coen, “Onde os fracos não tem vez”, é uma metáfora da distopia contemporânea que une arrogantes e ressentidos contra o Estado de direito democrático. O troféu de “psicopata mais realista” ao ator Javier Bardem deve ser estendido a Hayek, Mises e Friedman. Para saber o nome do genocida verde-amarelo, na pandemia, basta ouvir os mortos. A campanha contínua de desmoralização das vacinas e o atraso criminoso na compra dos imunizantes ceifaram sonhos. Centenas de milhares de óbitos pedem ainda por justiça.

O neocolonialismo explora o racismo étnico, religioso, eugenista – e o nanorracismo dos gracejos estigmatizantes que despertam o riso dos descendentes da “casa grande”. Daí os afetos da pseudo-superioridade colonialista de brancos sobre negros, indígenas e emigrantes de regiões periféricas. O afluente patriarcal contribui com o sexismo na violência linguística e física contra mulheres, gays e trans. Nenhuma nação cruzou ilesa pelo supremacismo vindo com as caravelas da velha Europa. A civilização ocidental moldada por séculos de governos expropriadores foi incapaz de resolver os principais problemas aos quais sua existência deu origem, o mimetismo e a viralatice. Conforme Contardo Calligaris, em Hello, Brasil!, “de colonizador e de colono todo brasileiro tem um pouco”. Cabe à esquerda resolver a equação, reinterpretar as ruínas dos povos originários e se redescobrir.

Um bicho de sete cabeças

As representações para legitimar o sofrimento se inserem no léxico das classes dirigentes, com três argumentos ideológicos: (a) proprietarista – eu sou o dono; (b) empreendedorista – eu sou foda e; (c) meritocrático – eu sou o melhor. Esse é o estofo narcísico do mito de que “a desigualdade moderna é justa, decorre de um processo livremente escolhido em que todos têm as mesmas oportunidades de aceder ao mercado e à propriedade, e se beneficiam da acumulação dos ricos, tidos como os mais empreendedores, mais merecedores e mais úteis”, ironiza Thomas Piketty, em Capital e ideologia. Sem o arcabouço de justificação, as críticas antissistêmicas implodiriam os pilares da opressão. A dialética da dor é simples: maior concentração da propriedade, mais desequilíbrio; maior apego ao empreendedorismo, mais precarização do trabalho; maior crença na meritocracia, mais iniquidade.

As desigualdades sociais, de raça, gênero e a falta de diretrizes equitativas não são disfunções do sistema, mas a essência do programa político das “elites”. A riqueza dos cinco maiores bilionários do mundo dobrou desde 2020; mas para 60% da população (cinco bilhões de habitantes) diminuiu, diz o relatório da Oxfam. Regimes discriminatórios acentuam a complementaridade das classes e escondem os mecanismos da superexploração nos discursos de uma falsa colaboração. A hegemonia neoliberal esparge a desindustrialização, a fome, a morte. A mais-valia mostra a garra selvagem nos esgares totalitários do mercado. A polarização impingida na lógica da barbárie exige a urgente definição de conceitos. Uma coisa é o joio da demagogia autoritária, outra é o trigo de uma democracia solidária.

No país, os neoliberais apoiam no Congresso as medidas regressivas de proteção ao meio ambiente para “passar a boiada”. No plano estadual e municipal, escassos cuidados ambientalistas cedem às desregulamentações. No Rio Grande do Sul, o poder facilita as enchentes devastadoras. Farsantes com coletes da Defesa Civil, na TV, agem como se não tivessem culpa no cartório pela destruição. O governador gaúcho (retrocesso na legislação ambiental) e o prefeito de Porto Alegre (portões do cais, diques e bombas d’água sem manutenção) são responsáveis pelas políticas de afetos hostis e negacionistas das catástrofes climáticas, sem investimentos de prevenção. Sobreviventes, de luto, apontam o dedo para cima: “Vocês fizeram um bicho de sete cabeças / Não tem coração que esqueça”.

O governo federal do presidente Lula está presente com iniciativas concretas para a reconstrução das cidades vitimadas, o que repercute na mobilização e no ânimo militante do voluntariado, apesar de o agradecimento do Palácio Piratini dirigir-se nas redes ao bilionário Elon Musk. A chuva não cura o complexo de vira-lata. Contudo, a dignidade exige os direitos da população para organizar a resiliência. A coragem resgata a comunhão republicana com as cicatrizes dos comuns. A cidadania registra na memória o ar blasé das finanças e do agronegócio que, após dez dias, se soma à corrente de ajuda ao RS com, pasmem, 460 cestas de alimentos para as cozinhas emergenciais. O número dá a exata dimensão da indiferença, comparado aos aportes do Movimento dos Sem Terra, dos Sem-Teto, dos Pequenos Agricultores, dos Atingidos pelas Barragens. Bem falava aquele alemão que “a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores” – com os afetos do trabalho.

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Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
Leia “No RS, a tragédia é natural, social e ambiental”, Gerson Almeida.