Uma lufada de esperança sopra na América Latina. Bolívia, Chile, Equador, países que sofreram golpes de Estado, parecem recuperar o protagonismo popular. Bolívia, com a vitória do MAS; Chile, com a vitória avassaladora no plebiscito do dia 25 de outubro, que instaura um processo constituinte respondendo aos anseios populares de superar plenamente a Constituição de 1980 do período pinochetista; o Equador, com a possibilidade de retorno da esquerda ao governo nas eleições em dezembro.

Cerca de 78% dos votantes no Chile decidiram por uma nova Constituição, via Convenção Constituinte Exclusiva. A participação no plebiscito foi estimada em torno de 50%, sendo o voto facultativo no Chile. A nova constituição será submetida a um referendo com voto obrigatório em 2022. Mas o resultado do plebiscito, em que pese as comemorações entusiásticas nas ruas de todo país, exige um exame mais apurado de como será o processo constituinte. Foi um primeiro passo, não isento de riscos.

A eleição dos constituintes será realizada em abril de 2021. Terá representação paritária de homens e mulheres, será Exclusiva e estabelece genericamente o direito de assentos destinados aos povos originários. A Convenção Exclusiva terá nove meses para redigir uma nova constituição, podendo estender-se no máximo por mais três meses. A previsão é de o Chile ter uma nova Constituição em 2022. Acrescente-se que no decorrer de 2021 haverá eleições municipais, regionais, parlamentares e presidencial em dezembro. Um calendário intenso para 2021, coincidindo em parte com os trabalhos da Constituinte.

A Constituinte é o resultado arduamente conquistado pelas manifestações de outubro a dezembro de 2019, seguidas por movimentos esporádicos até março desse ano. O Acuerdo Por La Paz Social y La Nueva Constitución que estabeleceu o plebiscito, aprovado no Congresso Chileno pela maioria dos partidos, despertou desconfianças nos movimentos populares organizados em assembleias, conselhos populares. Eles temem um conchavo pelo alto, dado a relativa rigidez do sistema político chileno, que se contentava em realizar ajustes na constituição de 1980. E com sobradas razões.

No início das manifestações – cujo gatilho foi a movimentação estudantil em torno do aumento de 60 pesos no transporte do metrô –, Piñera arrogantemente afirmava “estamos em estado de guerra’. Instituiu o toque de recolher, com uso de extrema violência policial quando o movimento extravasou limites estudantis e começou a receber a adesão da sociedade.

O movimento popular não fazia convocações centralizadas. O uso das redes sociais foi intenso e imperava certo espontaneísmo. Agregou ao movimento estudantil, principalmente os secundaristas, e movimentos sociais, que foram se estruturando ao longo dos anos da Concertação (uma coalizão de centro e centro-esquerda que agrupava todos partidos de oposição à ditadura, com exceção do Partido Comunista), e de resistência aos governos conservadores de Piñera.

Pelo menos desde os anos 2000 ocorreram grandes manifestações, como o Mochilazo (2002), a Revolução dos Pinguins (2006), o movimento pela Educação Pública (2011), o Movimento No + AFP – Administradoras de Fundos de Pensão com capitalização individual, controladas por empresas privadas (2016), a forte presença do movimento feminista, os movimentos socioambientais, a luta pela água e territórios, as greves de professores em 2019. A enorme insatisfação social acumulada confluiu no desafio às relações estabelecidas entre Estado e sociedade civil, incluído o sistema político.

Em torno das manifestações se agruparam alguns temas comuns: a questão da desigualdade, a defesa da autonomia feminina, o aumento abusivo das tarifas de água, luz, transporte, saúde, acesso à habitação, a carestia crescente com a crise do modelo econômico neoliberal corrigido e de “progressismo limitado” (conforme expressão do sociólogo chileno Manuel Antonio Garretón).

Isso não invalida no seu todo os ganhos sociais e alguns resultados de reformas, inclusive na área de saúde e mesmo na educação nos anos de governo da Concertação, apesar da manutenção de princípios de competição e busca de lucratividade, de inspiração neoliberal.

O estallido de 2019 (em tradução algo livre, o estouro) evidencia o fim de um ciclo, com um clima social de sufoco e mal estar devido à precarização dos direitos sociais, endividamento e principalmente de congelamento institucional. Apesar das reformas parciais na Constituição de 1980 (como o pluralismo político, em 1989, e o fim da nomeação de senadores pelas Forças Armadas e pelo Supremo Tribunal), persistia a regra de 2/3 para modificação de normas constitucionais. Essa regra permanece para aprovação de nova Carta Constitucional.

Se a transição para a democracia excluiu e subordinou em certa medida os movimentos sociais, com a adaptação da centro-esquerda a um neoliberalismo corrigido, hoje a situação é mais complexa. Há uma esquerda mais difusa socialmente, há certo protagonismo da esquerda anarquista (juvenil), além da presença de remanescentes da Unidade Popular em torno da grandeza histórica de Allende.

A novidade mais recente é a Frente Ampla, que agrega desde liberais democratas a progressistas de esquerda, com importante representação parlamentar e relação difusa com os movimentos populares. O Partido Comunista, que ficou à margem nos anos da Concertação, vem recuperando espaço.

Ao lado de atores tradicionais (sindicalistas, camponeses, sem teto e sem terra organizados), há forte presença organizada de povos originários (os mapuches são os mais expressivos e constituem 12,8% da população chilena, algo por volta de dois milhões de pessoas), de organizações estudantis, de ambientalistas, de organizações feministas, que foram decisivas no estallido. Quem não se recorda da performance “Um violador em teu caminho” (“El violador eres tu!”), do coletivo Lastesis, que se tornou elemento mobilizador do feminismo no Chile e mundo afora?

As manifestações mais decisivas, que chegaram no todo a mobilizar em torno de 4 milhões de pessoas, se realizaram entre 18 e 25 de outubro de 2019, mas tiveram certa continuidade até início de 2020, expandindo-se em direção às províncias e cidades como Valparaiso e Concepcíon ao sul. No decorrer se multiplicaram assembleias e conselhos, alguns setoriais, e até de torcidas organizadas como a do Colo Colo. Dos bairros populares aos de classe média. A bandeira do Colo Colo tremulava ao lado da bandeira Mapuche! Nesse processo germinou a proposta de Convenção Constituinte, tema tratado até então de forma secundarizada pela maioria dos partidos de oposição ou apenas considerado pela direita, abaixo de pressão das ruas.

Também emergiu uma instância, a Mesa de Unidade Social, que congrega mais de 100 organizações sindicais e sociais. Realizou-se uma greve geral em 12 de novembro em meio à violência repressiva. A mobilização exigia uma Assembleia Constituinte e repudiava a proposta de Congresso Constituinte feita pelo governo. Quatorze partidos de oposição exigiram a realização de uma Assembleia Constituinte Exclusiva. Essa foi a saída política. Um nova Constituição.

O debate se restringiu à forma (Convenção Mista, uma concessão, pois a direita preferia uma Convenção Congressual versus Convenção Constituinte), à admissão de paridade de gênero e de candidatos independentes. O Acordo assinado em 15 de dezembro limitou-se aos partidos, nem se postulou algum mecanismo institucional que aproximasse mais estreitamente o sistema político das organizações e movimentos presentes nas ruas, a não ser através de partidos ou da possibilidade das candidaturas independentes – que poderão se apresentar, desde que tenham assinaturas de 0,4% de quem votou em cada distrito eleitoral nas últimas eleições parlamentares (o Chile é dividido em 60 distritos para o que chamamos de Câmara Federal e 19 para o Senado. Cada distrito elege dois representantes).

A forma partido como a conhecemos não é mais capaz de abarcar a complexidade do mundo social e suas novas formas de sociabilidade política. Mecanismos de aproximação inovadores são necessários. Há um alargamento da política e desejo de socialização para além dos limites clássicos de representação. Como ignorar conselhos, assembleias populares que se expandiram no Chile durante o estallido? Na prática, um esboço de processo constituinte popular foi estabelecido à medida que se construíam consensos.

Há consenso nas bases populares em radicalizar o processo constituinte: desejam o fim do atual sistema de controle das pensões e aposentadorias por empresas privadas (as AFPs), a melhoria das pensões, a recuperação dos “bens comuns” (a questão da água é crucial), a efetivação de um Estado plurinacional, como demandam os povos originários, a ampliação dos direitos sociais via Estado, o respeito ao meio ambiente, a defesa dos direitos das mulheres, a reforma tributária que onere os mais ricos e mudanças na legislação trabalhista.

A manutenção da regra dos 2/3 para aprovar o texto da nova Constituição projeta no tempo algo da Constituição de 1980 – foi o instrumento que obstaculizou qualquer mudança estrutural nas instituições chilenas. As reformas de 1989 e 2005 não atingiram o coração do sistema fundado na ideia de mercado, individualismo e papel subsidiário do Estado.

A possibilidade de minorias direitistas (nem tão minorias assim, pois agora 22% dos eleitores simplesmente votaram em não ter uma nova Constituição) de forçarem consensos aquém do desejado nas ruas é real. A UDI – União Democrática Independente – partido de direita que faz parte da coalizão Chile Vamos, ora no poder com Piñera – comemorou o resultado do Rechaço. A UDI tem como um dos fundadores Jaime Guzmán, ideólogo pinochetista e idealizador da Constituição de 1980.

Portanto, a eleição dos 155 constituintes em 11 de abril do próximo ano será crucial para o destino do Chile. Não é gratuito, igualmente, o alerta de Carlos Arrué, jurista encarregado de temas constitucionais do PC, de que seria mais justo 51% de votos, ao invés de 2/3, para aprovação das novas normas. Também não é descartável o risco de se configurar uma Constituição de normas abstratas, tais como “é direito de todos o acesso universal à água”, sem definição se vale o primado público ou privado, ou sobre a autonomia ou não do Banco Central, entre outras questões. Há necessidade de reabrir o debate. Questão central: de onde vem o poder da Convenção Constitucional?

Há uma escolha: ou se avança, respeitando a vontade popular, ou se sujeita à vontade das elites chilenas, que seguem à risca o gattopardismomudar, para nada mudar essencialmente. A persistir a regra dos 2/3, o esforço popular de mobilização terá que ser redobrado. A Constituinte é passo inicial que condicionará toda agenda eleitoral do próximo ano e definirá as lutas vindouras.

Outras matérias publicadas no Terapia Política sobre o Chile: Artigo de André Stumpf Gonzáles “Chile: terremotos e plebiscito” e Video “Como o Céu é do Condor”