Cada pessoa tem uma relação particular com a morte. Fevereiro está começando, e dia dois é um dia marcante, pois desde adolescente escuto Caymmi …
Smiley Blanton era um médico norte-americano que se analisou com Freud em 1929 durante uns seis meses, tratamento que fez parte de sua formação como analista. Blanton pagava adiantado suas consultas, e Freud lhe dizia que, se por acaso morresse, ele teria que vir buscar as consultas que não teve, e o dinheiro ficaria com sua esposa. Blanton voltou em 1935, 37 e 38 para uma ou mais semanas de análise. Escreveu ao longo dos anos um diário da análise que foi publicado após sua morte e creio que ainda não foi publicado em português. Li há muito tempo em espanhol, e não esqueci que ao pagar antecipado sempre escutava o alerta de Freud: “Se eu morrer antes de completar as sessões que me pagas, te aviso que seu dinheiro estará com minha esposa e te peço que venha buscar”. Em uma das últimas vezes, Blanton, angustiado, perguntou: “Por que o Senhor fala sempre na morte?”. Freud disse: “Convém falar da morte, é um bom tema”. Li o livro há mais de quarenta anos, e essa história não foi esquecida, e sempre é tempo de conversar com a morte. Com o tempo a gente se acostuma com a morte, e lembrar-se dela pode aumentar o entusiasmo pela vida. Todos os dias, quando acordo, renovo meu amor pela vida, sinto gratidão por estar vivo junto aos meus amores.
Cada pessoa tem uma relação particular com a morte, pois ela envolve uma história, como a morte foi marcada em cada um, através da perda, da separação, da castração, que são equivalentes da morte. Os mortos podem nos visitar em sonhos noturnos, pois a nível inconsciente os mortos vivem, e daí podem ser visitantes. O tempo a nível inconsciente não passa, é um tempo que não passa, devido a ser um sistema atemporal, onde passado, presente e futuro convivem. Entretanto, saber disso, diante da morte, não serve de consolo, mas os mortos convivem com a gente e, num momento de apuro, se pode até conversar com eles ou rezar.
Conversar com a morte é aceitar a finitude, aceitar que a vida termina, tudo que é vivo um dia irá morrer. Aliás, cresce na humanidade a ideia de que a Terra tende a terminar com a vida, pois o ser humano escolhe cada vez mais os lucros acima da vida. Cada vez mais se escreve a ideia de que um dia poderá ser o fim do mundo, mas não se pensa no fim do capitalismo neoliberal, o sistema enlouquecido pelo lucro acima de tudo e de todos.
A morte não é um tema agradável para se escrever, mas é um tema que toca a todo mundo. Não conversa. Uma querida amiga disse: “Cuidado em escrever sobre Ela, pois assim a estarás chamando”. Ora, a palavra morte, falar da morte, conversar com a morte faz parte da vida, precisamos falar sobre os nossos mortos queridos. A medida que se envelhece as perdas aumentam, familiares, amigos, gente querida como Pepe Mujica está no finzinho da vida.
Fevereiro está começando, e dia dois é um dia marcante, pois desde adolescente escuto Caymmi: “Dia dois de fevereiro/dia de festa no mar/ eu quero ser o primeiro/ a saudar Iemanjá”. Foi no dia dois de fevereiro que voltei de Buenos Aires com a esposa e a filha para morar aqui. A separação da capital portenha foi vivida como uma morte, e após a euforia da chegada vieram tempos tristonhos, até ir fazendo as pazes com a querida Porto Alegre. A história de cada ser humano é uma história de separações e mortes, é preciso se acostumar. Estamos de passagem, e os céticos sabem que não terão outra vida, já os religiosos acreditam em uma vida após a morte. De minha parte, uma vida vivida, desfrutada, com sonhos e pesadelos, sucessos e fracassos está ótimo. Logo, chamo dois amigos para concluir, pois são os amigos que afastam a morte: Woody Allen disse que não tem medo da morte, só não quer estar presente quando ela chegar. Já o Verissimo acha a morte uma sacanagem. Um brinde aos humoristas, ao humor e à morte… melhor distante. (Publicado no Facebook)
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Ilustração: Mihai Cauli
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