Entre 10 e 11 de julho deste ano foram decididos dois dos campeonatos internacionais de futebol mais importantes, descontado o Mundial da Fifa: a Copa América e a Euro 2021.

Com uma diferença de menos de 24 horas, os sentimentos da população de quatro países foram colocados à prova, com vitórias redentoras e derrotas trágicas. Mas os papeis parecem estar trocados, como resultado dos fatores externos ao campo.

A “pátria de chuteiras” foi encarnada principalmente pela Inglaterra, com uma expectativa da quebra de um tabu de mais de 50 anos sem chegar a uma final. Envolta em polêmicas, com a decisão dos jogadores de fazerem uma manifestação antirracista antes do início de cada partida, foi vaiada por parte da torcida inglesa e aplaudida pelo técnico da seleção, Gareth Southgate, demonstrando entender a transição cultural pela qual passou o país nas últimas décadas, de império anglo-saxão a nação multiétnica e multicultural.

Isto não impediu que a final se tornasse um espetáculo preparado para o ufanismo, embalado por cânticos resignificados de Caroline, de Neil Diamond e The Football’s Coming Home, com uma súbita celebridade do obscuro grupo Lightning Seeds, que gravou a música 25 anos atrás.

Depois das divisões do referendo de saída da União Europeia, que foi somado à divisão sobre as medidas tomadas (tardiamente) pelo governo de Boris Johnson contra a pandemia da Covid-19, este parecia ser o momento de redenção, com o estádio de Wembley ocupado por mais de 60 mil torcedores, a maioria locais. As bandeiras com a Cruz de São Jorge tomaram o lugar da Union Jack, que os torcedores abanavam na final de 1966.

Tudo preparado para o apoteótico final, a música sobe, heróis em campo se abraçam aos torcedores, câmara em zoom mostra o príncipe herdeiro (o segundo na sucessão) abraçando o filho (o terceiro na fila). A pátria de chuteiras renasceria qual Fênix.

Porém não se tratava de um blockbuster de Hollywood, mas um drama europeu. Os jogadores que representam a nova geração erram suas penalidades, a Itália ganha, tendo como símbolos uma dupla de zagueiros veteranos de cabelos ralos que sofreu as mais diversas humilhações, incluída a não classificação da Itália para o Mundial de 2018. Provavelmente, o primeiro ministro, um tecnocrata que ocupa o cargo pela falta de uma maioria política que governe o país, não contava com uma taça para melhorar o humor dos italianos.

Esse evento ocorreu no dia seguinte à final da Copa América, em que se enfrentaram Argentina e Brasil, no Maracanã. Provavelmente o evento mais chocho e sem sal das últimas décadas no futebol sul-americano. Nem filme épico, nem drama. Mais um capítulo de uma longa novela que já não acompanhamos o enredo. O que poderia ser o novo maracanazo não passou de um estampido de festim, que não mereceu as capas dos principais jornais do Brasil que, em alguns casos, estamparam a vitória da Itália.

Quando a pátria de chuteiras de Nelson Rodrigues abandonou o campo? Vários fatores vêm se acumulando. A exportação de jogadores que antes de ter barba já estão jogando na Europa e em muitos casos são desconhecidos para a torcida local. As sucessivas derrotas, com o vergonhoso 7 x 1 como marca que diminuiu as expectativas de sucesso.

Também contou o esgotamento do modelo de competição, com o torneio desnecessário (o anterior fora em 2019) sendo trazido para o país por uma insistência da Conmebol – para garantir seus lucros, associada a uma CBF ávida de agradar um presidente da República querendo demonstrar uma normalidade inexistente em meio a uma pandemia que já cobrou a vida de mais de meio milhão de brasileiros -, depois que os anfitriões planejados, Argentina e Colômbia, retiraram o apoio ao torneio.

O rugido dos jogadores brasileiros descontentes com o não cancelamento, que parecia tornar-se uma revolta do bom senso contra a avarícia, durou até os patrocínios pessoais e as carreiras individuais serem ameaçadas pelos patrões. O miado de gatinhos dóceis falando em desconforto com o torneio, mas aceitando jogar, mostrou quem manda no futebol. Ninguém com vocação para Spartacus.

O esvaziamento foi consumado pela transmissão televisiva aberta, a cargo do SBT. A dona, nas últimas décadas, da imagem do futebol brasileiro, a Rede Globo, enterrou a cobertura do torneio nos parcos segundos dos telejornais, seja para impedir o crescimento de um rival no campo da comunicação, seja para marcar o seu ponto na batalha contra o inimigo maior na presidência da República, que ameaça seus ganhos em patrocínios com verbas públicas e a hegemonia do sistema de comunicação nacional.

Ao final, uma vitória magra da Argentina, em um jogo sem brilho, que tira das costas de Leonel Messi o peso de nunca ter ganho um título internacional, sem que, no entanto, tenha tido um brilho particular no feito (ao contrário de Maradona, que carregou o time nas costas). Os argentinos tiveram o seu dia de redenção.

Para os derrotados, Brasil e Inglaterra, há um ponto em comum. A necessidade de um elemento de identidade nacional que seja capaz de superar as divisões políticas. Os ingleses (e o Reino Unido como um todo) são uma ex-potência mundial que continua a busca de um papel na ordem mundial, ao mesmo tempo que grande parte de sua população perdeu o sentido de pertencimento a uma unidade política comum. O futebol pode não prover este resultado, mas daria um alívio temporário aos líderes políticos para pensar em algo mais.

No caso brasileiro, continuamos eternamente sendo o país do futuro. O futebol havia criado um sentido de orgulho nacional, de sermos a potência mundial deste esporte. Após a última conquista em 2002, o discurso ufanista passou para a projeção de nova potência econômica, aliado ao soft power como a organização de eventos esportivos como as Olímpiadas e a Copa do Mundo de Futebol como símbolos da modernidade do país.

De épico a trágico, o país afundou no Mundial, teve nas denúncias de corrupção o maior legado das Olimpíadas e dividiu-se politicamente a partir de 2013, em uma fratura que tem cada vez mais se acentuado. Não são poucos os brasileiros que devem ter torcido contra uma vitória do Brasil na Copa América, com o receio que o resultado fosse utilizado pelo agonizante (mas não morto) governo Bolsonaro como tábua de salvação, um Pra Frente Brasil, Salve a Seleção requentado, com o capitão no papel antes ocupado pelo general.

Estes dois eventos esportivos mostram o que há de melhor e de pior no esporte. Ele pode despertar o sentido de pertencimento, de empatia, curando feridas abertas em outras áreas ao se transladarem para o campo de jogo. A vitória alemã na copa de 1954, os jogos entre República Democrática Alemã e República Federal da Alemanha em 1974, e Irã e EUA em 1998 são os bons exemplos. O uso político por governos inseguros como meio de promoção são o seu lado negativo.

Obrigado, Gianluigi Donnarumma. Obrigado, Ángel Di María. Vocês nos livraram de ver mais uma vez a pátria de chuteiras ser utilizada por aproveitadores. Ganhou o futebol, ganharam, embora talvez não o saibam, os brasileiros e ingleses derrotados no campo.

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