O cerne do romance “O Processo”, de Franz Kafka, é a parábola “Diante da lei” sobre o autoritarismo. A história é a quintessência da espiritualidade kafkiana, e nela se clarifica sua forma de pensar. Impressionam a simplicidade e a complexidade, é singela e obscura, e gerando muitas interpretações e aplausos. Brevemente: trata-se de um homem do campo que demanda acesso à lei, mas o porteiro do Tribunal afirma que não está autorizado a permitir seu ingresso dizendo: “Se o atrai tanto, tente entrar apesar de minha proibição. Mas veja bem: eu sou poderoso. Eu sou apenas o último dos porteiros. De sala em sala, porém, existem porteiros, cada um mais poderoso que o outro”. O homem do campo então aguarda a autorização, que não vem, e passam-se anos, e o homem permanece sentado esperando a permissão de entrar na porta e assim envelhece. Quando está por morrer, ele pergunta: “Como se explica que, em tantos anos, ninguém além de mim pediu para entrar?”. O porteiro então diz: “Aqui ninguém mais podia ser admitido, pois esta entrada estava destinada só a você. Agora, vou-me embora e fecho-a”.

Kafka brilha em contos, cartas, parábolas, fragmentos, nos quais expressou seu antiautoritarismo de inspiração libertária. Um amigo seu, Felix Weltsch, criou uma expressão que poderia se aplicar a fé de Kafka: a religião da liberdade, de inspiração judaica heterodoxa. Essa religião imaginária teria a liberdade criativa como único princípio. O século XX já foi definido como sendo kafkiano, adjetivo que nasce de seu nome e é uma imagem labiríntica da qual os indivíduos não podem escapar nem compreender. Ele foi dos primeiros artistas a captar o totalitarismo, e sustentam que ele previu o quanto a humanidade estava ameaçada. Alertou como ninguém sobre a máquina judiciária do Estado desde a perspectiva das vítimas. Aliás, o livro “O Processo”, do qual faz parte a parábola “Diante da lei”, começou a ser redigido poucos dias depois do início da Primeira Guerra Mundial. Se a parábola do livro tem um caráter pessimista, é também anticonformista.

Kafka foi exaltado por Sartre, Borges, García Márquez e antes por Walter Benjamin, que em 1934, no décimo aniversário da morte do escritor, escreveu um ensaio sobre sua obra. Ao final reconta outra pérola de parábola que Kafka criou sobre o Dom Quixote na qual era o Sancho o homem livre com imaginações de aventura. Duplas imaginárias, duplas reais, os artistas criam a graça potente diante do autoritarismo. O camponês da parábola não pode ousar diante da lei, e há uma tendência humana a ser passivo diante de guardas e leis que intimidam. O autoritarismo é sedutor para os que tem medo da liberdade e são opressores, buscando um mito ou mitozinho para idealizar e a quem se submeter.

Convém abrir as portas e janelas do conhecimento, como fez Kafka, e assim se orientar nos labirintos em busca de novos caminhos. Viver a vida labiríntica com artistas e humoristas como Gregório Duvivier. Na última sexta-feira 23 foi ao ar o seu Gregnews sobre o “Golpe”, e nos primeiros minutos ele estava um pouco acelerado, pois iria falar sobre os armados e as armações. Depois se acalma e expressa uma coragem admirável diante das ameaças autoritárias dos velhos tempos como pode ser visto no youtube. Os novos tempos chegam com a escritora Conceição Evaristo:“No varal de um novo tempo/escorrem as nossas lágrimas/fertilizando toda a terra/ onde negras sementes resistem/ reamanhecendo esperanças em nós”. ( Publicado dia 30.07.2021 no facebook do autor)

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