midiáticos
“Respiraremos tranquilos quando Bill Gates se tornar o dono de tudo e houver apenas uma versão dos fatos” – Gore Vidal, num artigo para a The New Yorker, dezembro de 1997 (lembrando que em 1997 não havia ainda a rede X nem Elon Musk, frente ao qual Bill Gates poderia ser imaginado como um herói da decência e da democracia).
I
Trump não foi eleito por acaso, não é um raio num dia de céu azul. O país que o elegeu já existia antes do 6 de novembro de 2024. E seguirá existindo depois dele, provavelmente muito mais revigorado. Setenta anos atrás, o escritor Dashiell Hammett foi convidado a comparecer frente ao Comitê de Atividades Antiamericanas do senador Joseph McCarthy e interrogado diretamente pelo inquisidor, como era usual. McCarthy teria se dirigido a Hammett indagando se ele, estando no lugar do próprio senador, “permitiria a presença dos seus livros nas bibliotecas americanas”. Ao que o autor de O Falcão Maltês teria respondido: “Se eu fosse o senhor, senador, não proibiria meus livros nas bibliotecas, mas a existência das bibliotecas.” Passadas essas sete décadas desde aquele dia de março de 1953, a Associação de Bibliotecas Americanas (ALA para sua sigla em inglês) afirma estar alarmada com o “número de livros censurados ou retirados de bibliotecas públicas americanas” (ver as excelentes matérias de Eduardo Moura na Folha de São Paulo de 16/11/24 e de Alexandra Alter, de 16/03 do mesmo ano, também na Folha). De acordo com os registros da ALA, até o início da década de 2020, o número médio anual de livros censurados nos Estados Unidos girava em torno de 343 por ano. Em 2021, “foram registrados 1.858 títulos alvo de censura, em 2022 esse número aumentou para 2.571, um recorde histórico até então, e em 2023 saltou para 4.240 títulos, marcando o nível mais alto já documentado” pela referida Associação. Não será absurdo pensar que a maldição deixada no ar por Hammett na sala de audiências do senador McCarthy venha no final das contas a se tornar realidade e, ao invés dos livros, comecem a proibir a existência das bibliotecas.
II
E não é que Pablo Marçal tinha razão ao apontar a emergência do Quinto Poder atropelando as mídias tradicionais? Ao menos no que diz respeito à capacidade de agrupar, mobilizar e antagonizar, fica difícil contestar. É um engano pensar que instrumentos como o X são espaços democráticos de debate, embora sejam lugares onde em princípio todos podem falar o que bem entendem. As chamadas redes sociais são, antes de tudo, territórios virtuais para agrupar indivíduos que se identificam uns com os outros, praças para a aglomeração de idênticos, espaços de arregimentação e promoção de conflitos (no sentido bélico dos termos, i.e., como campo de batalha moldado para aumentar a força e o número de exércitos em guerra e destruir o inimigo – o outro). O X e congêneres são máquinas neutras e democráticas até o momento em que os que se apossam delas as transformam em armas de guerra política. Quando surgiu a imprensa, nos alvores do século XIX, ainda havia – e duraram por algumas décadas – também os jornais das massas plebeias disputando a atenção, os corações e os cérebros dos cidadãos, quase em igualdade de condições com os periódicos dos ricos. Em alguns momentos do início da industrialização, os operários investiram contra as máquinas porque as viam como competidoras que lhes roubavam postos de trabalho. Claro que o problema não eram as máquinas, mas os seus proprietários. Pode não ser uma boa comparação, mas serve para lembrar um dos argumentos levantados pelos que se opõem ao incipiente movimento de boicote e abandono da plataforma de Elon Musk. Os casos guardam sem dúvidas certa similaridade. O X, no entanto, assim como a mídia tradicional, trazem um complicador: são máquinas de convencimento ou mera tapeação e mentira, instrumentos de propaganda e sedução, ferramentas diretamente políticas e ideológicas. E em todos os casos é preciso ver quem manda.
III
Elon Musk apenas escancarou essa realidade ao comprar o antigo Twitter para fazer do X uma máquina sob seu controle, instrumento para meter o dedo e influenciar tomadas de decisões políticas (e/ou comerciais), para interferir na administração do Estado onde quer que lhe interesse e lhe pareça possível atuar. É perfeitamente certo que sem Donald Trump, pelo menos a essa altura do século XXI, o X não fosse mais que um terreno para a satisfação masturbatória de tribos subletradas e da grande massa planetária de consumidores. O mesmo se poderia dizer da sua atuação no Brasil. Sem os bolsonaristas e sua aguda vocação de rebanho, a atuação de Musk não teria provocado o ruído que acabou provocando.
IV
Migrar do reino do Quarto Poder para a massiva população que alimenta e faz crescer as redes sociais como o X e seus similares (o recém-parido e ainda não muito estabelecido Quinto Poder), ou simplesmente não abandonar o espaço supostamente democrático dessas plataformas digitais. É porque ali o cidadão comum pode ter voz, ao contrário do que acontece nas mídias tradicionais? Não é o mesmo que sugerir a disposição de disputar a hegemonia do X com seu proprietário e seus milhões de seguidores? Ou o que resta é calar, já que tanto uns quanto os outros estão controlados pelo Capital? O silêncio e a inação dificilmente são uma boa política, e quando acontecem é que não resta alternativa (à simples sobrevivência física, por exemplo). O cerco se fechou ou está prestes de se fechar. Visto de um ponto de vista histórico, o X como ferramenta da ultradireita é apenas a sequência natural do desenvolvimento dos meios de comunicação tradicionais como instrumentos de poder dos donos do dinheiro. Em nenhum dos casos foi concedido de fato o direito à palavra para os que estão do lado de fora das muralhas dos palácios. E essa perda vem de longe. Aqui e ali, vez ou outra, abrem-se pequenas brechas para os resmungos dos hereges. Se, na própria sociedade, e sobretudo nas ruas, esses hereges são capazes de gritar ou gritam eventualmente mais forte e em uníssono, algumas frestas então se abrem ou se ampliam as poucas que existem. Por momentos. Se, ao contrário, não conseguem falar desde os espaços públicos que ainda restam e se fazerem escutar ali onde reproduzem suas existências materiais, os espaços nas máquinas, novas ou antigas, que servem para falar se estreitam até desaparecerem. (Poderia também ser dito de outra maneira: o que já não era grande coisa, mas onde havia, sob determinadas circunstâncias – ou relações de força –, algum pudor, tornou-se palco e universo da reprodução descontrolada de multidões de farsantes crônicos, amadores e/ou profissionais.)
V
“É claro que a extrema direita usa o X e as outras redes para disseminar boatos e ódio, mas muitas grandes empresas de mídia nas mãos de milionários com uma tendência política que não é exatamente progressista também servem ao mesmo propósito. Com uma diferença importante: nas redes sociais, pelo menos, os cidadãos comuns têm voz e podem responder. O discurso que prescreve o abandono das redes sociais, mesmo que seja emitido com boas e decentes intenções, leva à recuperação do monopólio da informação pelos grandes poderes da mídia nas mãos da classe rica.” Este é um pequeno trecho do editorial do diário digital de esquerda RED, aqui da Espanha cujo título pergunta: “Temos que abandonar o X?” e cuja resposta é uma defesa enfática no sentido contrário. (Os itálicos são de minha responsabilidade.) É uma longa e enfática sustentação da ideia de que não cabe abandonar o X. A polêmica está instalada e, se já vinha ocorrendo, cresceu na medida em que dois dos mais respeitados jornais da Europa decidiram abandonar a rede de Musk, o The Guardian da Inglaterra e o La Vanguardia da Espanha (ver artigo anterior).
VI
Embora seja praticamente impossível mensurar, parece evidente a perda de influência dos grandes e tradicionais meios de comunicação de massa, sobretudo os impressos, para as redes sociais. Uma perda particularmente aguçada e particularmente evidente nos momentos de tensionamento político e de crescimento da ultradireita. Pode ser que seja realmente justa a análise do RED. Entretanto, e feitas todas as considerações anteriores, há momentos em que o boicote a uma determinada rede social, com a escolha de alguma rede alternativa, passa a ter um significado político que transcende significativamente os fundamentos daquela análise. Foi o que fizeram os leitores do The Washington Post em protesto contra a interferência direta do proprietário, Jeff Bezos, na linha editorial do diário, ou como eventualmente se poderia fazer contra um jornal qualquer que passasse a defender em suas páginas teses e bandas racistas, xenófobas, fascistas. (Segundo noticiado pelo próprio La Vanguardia a Bluesky, uma das alternativas ao X, “ganhou cerca de 2,5 milhões de novos usuários na última semana, elevando seu número total de usuários para mais de 16 milhões, com a maior parte desse crescimento vindo dos EUA.” De acordo ainda com o jornal espanhol, “o X atualmente tem uns 335 milhões de usuários em todo o mundo, cerca de 33 milhões a menos do que tinha quando Elon Musk assumiu as rédeas da plataforma em 2022”).
Nenhum dilema
A ultradireita, seus capos e seus seguidores mais ou menos fanáticos, já fizeram claramente sua opção e não vão largar o osso. O instrumento parece lhes ter servido como uma luva. Ali se sentem em casa, um meio ambiente propício e quase que perfeito para sua autorreprodução. Não lhes é difícil deixar para trás os jornais tradicionais como uma ferramenta que a seu tempo também foi útil (e em muitos segue sendo), mas talvez seja demasiado sofisticado para que suas energias brutais possam vir à tona desde os abismos mais obscuros e tenebrosos de suas psiques. Com raríssimas exceções, nunca foram muito afeitos aos lugares onde a palavra escrita tivesse importância – mas, cuidado, educação formal tampouco é garantia de boas escolhas, e os exemplos deixados pela história não são poucos.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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