Enquanto isso, nos interiores do Vaticano, sede da monarquia eclesiástica absoluta dos católicos, 133 cardeais elegeram o novo pastor da Igreja. Um progressista para resistir à onda reacionária?
“Eu rasgo o câncer… eu curo a leucemia”, promete o pastor
I
Ele garante ter 1,2 milhão de seguidores, e deve ser verdade. É gente demais, claro. Ou talvez não, se considerarmos a população do planeta e seu crescimento nos últimos 50 anos – são 8 bilhões de habitantes, eram 4 bilhões em 1975, de acordo com o Worldometer. Então, é melhor relativizar. Porque quase tudo se tornou superlativo: o número de crentes nos templos, de fãs nos shows de música, de torcedores nas arquibancadas, de entusiasmados convictos de ultradireita, tanto quanto o obscurantismo que governa os espíritos, a anulação da sensibilidade e dos sentidos. Mas não de todos os sentidos, naturalmente, porque o paladar para as guloseimas e os manjares e os vinhos, assim como o olfato para gamas infindáveis de perfumes, esses, se sofisticaram e seguem se sofisticando talvez como nunca antes – imagine que o melhor dos vinhos degustado por Nero (para voltarmos novamente a ele) não chegará aos pés do mais barato dos rascantes vendidos num boteco de ponta de rua. O dono desse significativo capital de seguidores de internet e autor da promessa que titula esse artigo é um jovem pregador de Carapicuiba no interior de São Paulo chamado Miguel Oliveira, tem 15 anos de idade, e que “afirma ter iniciado sua jornada religiosa aos três anos, após relatar uma cura milagrosa de surdez e mudez”. Um dos que vieram a público defender a figura do novo profeta é, e não deveria mesmo deixar de ser, o influencer Pablo Marçal. O barco, quer dizer, a arca é a mesma e há espaço bastante a ser explorado e ocupado. Na rabeira da fama repentina (entre nós, os mortais não ungidos pela graça) as imagens de dúzias de novos profetas, porque é assim que Miguel se autodenomina, nada menos que profeta, vão aparecendo. Aparentemente, é um ramo em franco crescimento. Nada de novo, assim funciona o mundo da mercadoria. É preciso atender a tantos públicos (ou mercados) quantos sejam possíveis, além de inventar novos – crianças, mulheres, mulheres jovens e senhoras, anciãs, pretos e brancos e pardos e amarelos. Que venham então as mais variadas gamas de profetas mirins e missionárias púberes etc. – a construção da identidade, como se sabe, é peça sine qua non para o estabelecimento do vínculo.
II
Para o dogma católico, o fiel será salvo (da danação eterna, do fogo do inferno) graças à fé, suas boas obras na terra, ao batismo e à eucaristia. Para os protestantes, será salvo independentemente de seus bons ou maus atos terrestres e “suas boas obras são consequência da fé verdadeira, mas não contribuem para a salvação”. Para essas novas denominações que não param de surgir, nem de crescer (segundo o IBGE há mais de 100 mil templos evangélicos espalhados pelo país e existem entre 20 mil e 40 mil denominações ou ramificações diferentes), a graça suprema parece ser antes de tudo a ascensão, não mais aos céus ou ao paraíso, mas social – ou o enriquecimento acelerado para os que se destacarem na transmissão da Palavra. A crença pode ser no divino e no intangível, mas a recompensa tem que ser imediata e material. O negócio, o pequeno negócio na maioria dos casos (como o do autônomo que formou a base eleitoral do Pablo Marçal, por exemplo), ou médio ou grande (como o do Silas Malafaia, proprietário da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, e mentor de Jair Bolsonaro), precisa seguir crescendo como qualquer outro, e o que busca o crente presente aos cultos é prosperar tanto quanto o próprio pastor e sua igreja, e presenciar, ali mesmo, a exibição de milagres como o da multiplicação dos pães e exemplos comprovados de casos (cases) que deram certo por conta da Graça.
III
E, no final das contas, qual o problema que o evangelizador (o pregador, o messias, o profeta – varia muito a hierarquia dos encarregados da empresa divina na Terra) seja uma criança de cinco anos de idade, um adolescente, uma púbere ou um marmanjo esperto? Que nexos minimamente coerentes se espera encontrar nas suas leituras do livro sagrado? Num pequeno texto sobre a propaganda fascista, Adorno diz que os objetivos dessa propaganda “são autoritários e irracionais, (e) não podem ser alcançados por meio de convicções racionais, mas somente através de um hábil despertar de ‘uma parte da herança arcaica do sujeito’ (Freud)”. A lógica interna da propaganda fascista parece ser muito semelhante àquela que guia a pregação desses novos pastores. Vale literalmente qualquer interpretação e o que o orador quiser encontrar ali, ele procura na própria cachola e lá vai estar. Alhos com bugalhos e seja o que o Senhor determinar. A rigor, importa pouco o conteúdo das arengas, admoestações ou súplicas. Importa é que aquele que as emite esteja investido pela aura de autoridade que o crente está disposto a lhe conceder. O que vale é a fé da qual o próprio crente é portador. Lá no palco, de todos os tamanhos, alguns tão ou mais espetaculares que o de estrela pop em Copacabana, está o seu pastor e ele, o crente, definitivamente o que quer é ser guiado. Ele tem sede de obediência (para usar a expressão do psicólogo francês Gustave Le Bon citada por Freud em Psicologia das Massas e Análise do Eu).
IV
Na vasta planície destinada aos empreendedores do Senhor e seus seguidores, as vertentes antes exploradas tanto pelo catolicismo quanto pelo protestantismo tradicional e sua variante calvinista já não atendem mais às demandas espirituais desse próspero e admirável mundo novo. Eram demasiadamente sofisticadas e exigentes, urgia substitui-las – timidamente, por enquanto, alguns ramos do catolicismo temerosos de desaparecer tentam se adaptar, copiando dos rivais que avançam sobre o seu território algumas de suas técnicas e procedimentos. O que agora se exige é qualquer coisa que vá mais diretamente nas veias, como uma droga sintética, como o crack.
V
Difícil saber quantos daqueles 100 mil templos de evangélicos ou das quase 40 mil denominações dão ou darão amparo político para o bolsonarismo. Há evangélicos, assim como católicos e protestantes, que se alinham com a esquerda, ou pelo menos com Lula. Mas dificilmente será uma extrapolação apostar que a maioria despenca com gosto para a banda da ultradireita e segue Bolsonaro (ou o seu ungido), como se ele próprio fosse o Messias.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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