- Queer é estranho, raro, esquisito. […] É um jeito de pensar e de ser que não aspira ao centro nem o quer como referência; […] que desafia as normas regulatórias da sociedade, que assume o desconforto da ambiguidade, do “entre lugares”, do indecidível. Queer é um corpo estranho que incomoda, perturba, provoca e fascina[1]. Guacira Lopes Louro
Dentre as letras que fazem parte da sigla LGBTQIA+ nenhuma provoca mais discussões e curiosidade que o Q, de queer. E não é por menos. Afinal, essa é uma identidade ancorada em uma ideia que questiona o próprio ato de se identificar. Na prática, qualquer indivíduo que questiona a organização social do mundo em dois polos, menina/vulva/heterossexual-menino/pênis/heterossexual pode se considerar queer. Ou seja, quem é queer deseja provocar e questionar os padrões regidos pelo regime heterocentrado, ampliando a forma como podemos ser e (vi)ver.
“Ok, mas o “Q” não seria similar ao “+”? Qual a necessidade de tantos conceitos? Isso tudo, esse número de letras, não atrapalharia mais que ajudaria?!” “E esse uso do “Q” como categoria, não mostra uma contradição da galera que estuda o assunto?”
Antes de explicar tudo isso, vale apresentar o conceito em si de maneira mais cuidadosa. A expressão “teoria queer” nasceu em uma palestra realizada pela pesquisadora Teresa de Lauretis na década de 1990, nos EUA, quando ela buscou problematizar as identidades sexuais e a matriz binária. Essa matriz enquadra os indivíduos dentro da lógica macho/fêmea, com a heterossexualidade constituindo-se como a referência para todas as demais sexualidades. A teoria queer chama atenção para a perversidade de um regime heterocentrado que produz diferença e, consequentemente, estigmatiza todas as pessoas que se desviam das expectativas sociais fundamentadas na heteronormatividade. Ou seja, quando se toma por referência de sexualidade os heterossexuais, imediatamente todas as demais categorias constituirão, por definição, uma espécie de desvio da normalidade. Portanto, a quebra de tal paradigma passa a ser fundamental na busca de uma sociedade igualitária.
Do ponto de vista filosófico, é útil lembrar que, em última instância, a questão talvez mais profunda dessa discussão seja de natureza metafísica. Para ser mais exato, trata-se da questão do conhecimento, que já estava posta na dualidade Parmênides X Heráclito e que tem uma profunda ligação com nossa relação com o mundo. Para Parmênides, “o que é, é e o que não é, não é”. Heráclito entendia esses polos do “ser”, mas acreditava também no “vir a ser”, o famoso “devir”, a mudança. Assim, um rio em que entramos hoje não seria o mesmo rio de amanhã. Nós também não. Enquanto em Parmênides a necessidade do conceito era fundamental – afinal, as coisas eram algo fixo –, em Heráclito isso era posto em dúvida pela inevitabilidade da mudança. Para ele, as coisas mais estão do que são e a transformação é a maior inimiga do conceito.
Na prática, mesmo diante desse mundo líquido de Heráclito, sempre optamos por nomear. Isso parece necessário uma vez que entendemos e nos comunicamos com o mundo por meio de conceitos. “Isso é uma árvore, isso um gramado, isso um arbusto.” Quando surgem arbustos com cara de árvore ou com cara de gramado e acabamos notando que nosso vocabulário está obsoleto, criamos novas categorias, em um eterno correr atrás da impossível reconciliação com Parmênides. O tanto que nos aprofundaremos nos conceitos ou o tanto que os faremos evoluir e se multiplicar será condicionado pela medida da importância do assunto. Excetuando para um botânico, por exemplo, talvez não houvesse sentido em criar uma categoria intermediária entre a de árvore e a de arbusto. Mas algo deve permanecer vívido em nossas mentes: o arbusto pouco liga para o botânico, ou seja, os conceitos estão em nossa cabeça e não no mundo.
Os conceitos evoluem, frequentemente, pela divisão e subsequente proliferação de nomes. Os átomos, por exemplo, já foram considerados a menor unidade da matéria pela química. Hoje, sabe-se que compreendem uma série de outras partículas, todas merecedoras de novos conceitos e nomes. De certa forma, na física, a própria noção de partícula já evoluiu, assim como a de onda, a de massa, a de espaço e a de tempo. Na biologia, o que antes era chamado de espécie, hoje, incorpora uma série de entidades cada vez menores e com conceitos cada vez mais estritos. Temos então a espécie genética, a biológica, a evolucionária, a ecológica e quantas outras espécies impuser nossa demanda de entendimento do mundo. O que pensávamos sobre as partículas hereditárias de Mendel também evoluiu. Inicialmente, a composição química do material hereditário era a proteína, e somente após mais de uma década de pesquisas passou a ser a cadeia de nucleotídeos localizada no núcleo da célula. Quanto mais investigamos, mais encontramos e mais conceitos produzimos.
Essa fluidez do mundo escancara o quanto nosso atual paradigma é frágil e o quanto existe vida para além do homo/hetero. Além disso, como diria um amigo próximo: “para se ter isso bem sabido, há que se perceber a boniteza dos corpos, gêneros e sexualidades dissidentes, pois é justamente ela que vai nos revelar a estreiteza do atual paradigma.” A diversidade de categorias identitárias forjadas no âmbito social evidencia a multiplicidade de formas de se constituir humano. A teoria queer se encaixa nesse contexto, nos provocando a pensar que se existem categorias identitárias surgindo constantemente, é porque aquelas que conhecemos hoje não abarcam o desejo de todas as pessoas. No lugar de propor o “enquadramento” dos grupos em categorias específicas, o queer também nos ensina que corpos, gêneros e sexualidades dissidentes mostram os limites e as contingências das heteronormas.
Isto posto, podemos voltar aos questionamentos mencionados acima, ou seja, a presença simultânea tanto do “+” quanto do “Q” na sigla, a multiplicação de conceitos e categorias na área e a suposta contradição identidade X não identidade.
No que diz respeito ao primeiro ponto, o “+” inclui todas as identidades sexuais e de gêneros que não estão listadas na sigla, como é o caso dos pansexuais. Assim, o “+” de certa forma mostra que o final da sigla é uma porta aberta, pronta para incluir e abraçar todas as categorias conhecidas que não são listadas bem como as categorias que estão constantemente emergindo e se reconfigurando. Já o Q inclui as pessoas que não se encaixam na matriz binária heteronormativa e patriarcal, sendo que muitos usam o termo como forma de resistir explicitamente às identidades sexuais mais popularmente conhecidas. Portanto, além de ser bastante equivocado se imaginar que o Q estaria contido no “+”, ambos os símbolos enviam mensagens radicalmente diferentes, o que implica na possibilidade de convívio pacífico na sigla LGBTQIA+.
Já quanto à segunda pergunta, os estudiosos das questões associadas a gênero não se distinguem de outros cientistas, como biólogos, físicos ou matemáticos. Eles são tão apaixonados pelo tema quanto quaisquer outros cientistas, sendo que, pelo fato de sofrerem na pele, frequentemente, as consequências da ignorância sobre o assunto, talvez possamos considerar suas conclusões ainda mais carregadas de valor.
Paralelo traçado, pensando na multiplicação de conceitos e nomes, tente dizer a um biólogo que ele tem que parar de descrever espécies ou parar de desvendar a diversidade da vida. A resposta virá contundente como um gancho do Mike Tyson. Tente falar a um astrofísico que um planeta a mais ou a menos seria algo irrelevante ou falar para um matemático que já temos teoremas demais, e terá uma resposta similar. Portanto, pedir comedimento a quem se importa e, particularmente, a quem tem lugar de fala em algum tema é dar soco em ponta de faca ou, mais apropriadamente falando, andar para trás na história.
Por fim, cabe ressaltar que a história da filosofia já demonstrou há tempos o valor de paradoxos, dilemas e contradições (ou ilusões de contradição) na evolução do saber e do discurso[2]. Essa importância é consequência direta da impossibilidade do uso de uma razão fria em um mundo onde a fluidez do tempo, a história e as percepções individuais desempenham um papel tão importante. O melhor exemplo disso no Brasil são as ações afirmativas como a das cotas, onde se busca a igualdade por meio de um necessário tratamento desigual.
Curiosamente, a ideia de que devemos desconfiar da razão foi alcançada por meio da própria razão ainda no século XVIII (David Hume e Immanuel Kant). Nietzsche, já no século XIX, usou do mesmo tipo de contradição ao acreditar poder destruir a moral por uma questão de moral, assim como Karl Popper revolucionou a epistemologia ao defender que o falseamento, ou seja, o “não saber” seria o único caminho para devolver a razão (dedutibilidade) ao saber. Esse autor se superou ao defender que intolerantes deveriam ser tratados com intolerância se quiséssemos, de fato, preservar a liberdade em nossa sociedade.
A teoria queer trilha o mesmo caminho. Ela usa o artifício de assumir uma identidade “cavalo de Tróia” cuja sina é fazer extinguir, primeiro, o paradigma da heteronorma e, depois, a própria necessidade de identificação.
Referências:
[1] LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
[2] Fogelin, R. (Ed.) (2003). Walking the Tightrope of Reason. New York, US: Oxford University Press.
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