Há quase um ano, postei neste blog um artigo sobre a (in)segurança hídrica no Rio de Janeiro, como um problema de especial relevância nesta Região Metropolitana a ser enfrentado com prioridade no pós-pandemia. À época, não se sabia quanto tempo o cenário que se avizinhava demoraria, imaginava-se algo em torno de alguns meses, e o fato é que 12 meses se passaram e as perspectivas ainda são bastante dramáticas.
Já o “fenômeno” da geosmina, contornado paliativamente pela CEDAE com uso de insumos e processos físico-químicos ficou “esquecido” e, como todo problema guardado na gaveta, insiste em retornar e assombrar a população. Mesmo com anunciados R$ 800 milhões de superávit em 2019, a empresa não foi capaz de avançar em investimentos efetivos para evitar a repetição do fenômeno o qual, desta vez, já com alguma experiência, foi aparentemente controlado de forma mais rápida. Mas que ressurge, juntamente com o fantasma da redução da disponibilidade hídrica na bacia do Rio Paraíba do Sul e às vésperas do prosseguimento do processo licitatório para a concessão da Companhia pelo governo estadual.
Muitas “teorias da conspiração” também ressurgiram, inclusive apontando que o evento da geosmina seria causado “artificialmente”, para justificar e induzir a opinião pública em relação à incompetência da CEDAE e a necessidade de sua privatização.
Nesse intervalo de um ano, o governo federal logrou aprovar o novo Marco Regulatório do Saneamento Básico, lei nº 14.026/2020, cujo conteúdo foi analisado pelo excelente artigo de Rodrigo Mascarenhas – Saneamento, grana e ANA, postado neste blog logo após sua aprovação. Concordando com Mascarenhas, o que temos desde então, mais do que a promulgação da lei, é a indução à concessão do saneamento básico por estados e municípios por força das linhas de financiamento disponíveis. E será esse o caminho que irá nos redimir?
Vale, portanto, examinar brevemente aqui os vários “modelos de gestão” do saneamento básico no Brasil que prevaleceram em cada um dos períodos diferenciados pelos cenários político-institucionais e que, por incompletos, descontinuados ou insuficientes, não lograram até hoje a universalização dos serviços a toda a população. Ao contrário, mantém patamares inaceitáveis de atendimento em um país cuja economia está entre as 12 maiores do mundo: conforme aponta o Ranking do Saneamento Básico 2019 do Instituto Trata Brasil, o país ainda tem quase 35 milhões de pessoas sem acesso à água tratada, 100 milhões sem coleta de esgotos (47,6% da população) e somente 46% dos esgotos produzidos no país são tratados.
Em cada um desses períodos, os municípios, titulares dos serviços de saneamento básico segundo a Constituição Federal de 1988, tiveram que se submeter aos modelos propostos, implicando maior ou menor autonomia sobre seu poder decisório quanto à escolha da forma de gestão dos serviços.
Na década de 1960, durante a ditadura militar, com a criação do Banco Nacional da Habitação – BNH, o governo federal estruturou o Plano Nacional de Saneamento – PLANASA, lastreado nos recursos abundantes do recém-criado FGTS, e direcionou importante foco para investimentos e ampliação dos sistemas de abastecimento de água, ainda precários em todo o país, justamente em período de enorme aceleração da urbanização no país. Para tanto, foram criadas as companhias estaduais de saneamento básico, visando maior escala para os investimentos públicos, formação de equipes técnicas especializadas e possibilidade de utilização de subsídios cruzados entre cidades e áreas com maior capacidade de pagamento pelos serviços prestados via tarifas versus áreas com menor capacidade contributiva.
Nesse período, portanto, os recursos federais disponibilizados via BNH só eram acessíveis aos municípios que “concedessem” os serviços de saneamento básico às empresas criadas. Na ausência de outras linhas de financiamento, tanto municípios frágeis quanto também muitos que dispunham dos seus Serviços Autônomos de Águas e Esgotos – SAAEs com razoável estrutura foram induzidos a aderir ao modelo preconizado. Não há dúvida de que os investimentos maciços em abastecimento de água resultaram em significativo crescimento dos percentuais da população brasileira cobertos pelos serviços. Por outro lado, mais água significa maior geração de esgotos e, portanto, o cenário ambiental e de saúde pública se agravou sobremaneira pelo pouco investimento concomitante em redes de coleta e tratamento dos esgotos gerados.
Com a redemocratização do país, promulgada a C.F. 88 e refletindo as propostas de descentralização das políticas, reconhecia-se a clara referência ao município como titular dos serviços de saneamento, entre aqueles caracteristicamente de competência local. Assim, importante tentativa para estruturação de política nacional e regulação para o setor veio sendo construída ainda no final da década de 1980 e início dos anos 90.
Capitaneados pela Associação Brasileira de Engenharia Sanitária – ABES e pela Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento – ASSEMAE, os diferentes atores do setor do saneamento e da sociedade civil debateram e formularam um projeto de lei (PLC 199) que trazia avanços conceituais importantes ao incorporar a visão do saneamento ambiental como integrador de várias políticas. Essa concepção envolveu grande articulação dos agentes do setor e também da burocracia federal com os representantes legislativos. Ainda assim, o PLC 199 foi integralmente vetado como um dos primeiros atos do governo Fernando Henrique Cardoso, configurando forte rompimento da aliança construída em torno do projeto, sinalizando o comprometimento da equipe econômica que assumia naquele momento com a questão do ajuste fiscal e seu controle e evitando a gestão por fundos setoriais como fatores de endividamento interno e externo (Zveibil, 2003).
Nesse novo cenário, emergiam no país e em todo o mundo globalizado os debates sobre a “Reforma do Estado”, referências que o governo federal se propunha a incorporar em vários campos das políticas públicas, visando a redução do Estado, com concessões dos serviços públicos e criação de agências reguladoras setoriais. Se tal modelo avançou consistentemente em áreas como energia e telefonia, não logrou o mesmo êxito no campo do saneamento básico.
O Programa de Modernização do Setor Saneamento – PMSS, importante iniciativa que ocorreu no período com vistas a criar as bases para o avanço dos conceitos de reforma do Estado nesse setor, não foi suficiente para institucionalizar as estruturas e o marco regulatório pretendido pelo executivo federal, o que se expressa pelo número reduzido e pela fragilidade das experiências de novas formas de gestão induzidas pelos programas disponibilizados. Houve clara redução de disponibilização de recursos governamentais ao setor público e a abertura de novas linhas indutoras da participação do setor privado no saneamento.
Destacam-se os programas de incentivo ao aperfeiçoamento institucional direcionado às concessionárias estaduais e as linhas disponibilizadas pela CAIXA e pelo BNDES para o setor privado, justificadas pela impossibilidade de emprestar ao setor público em função das resoluções do Banco Central. Assim, os programas federais voltados para ampliação dos sistemas de saneamento em toda a década de 1990 totalizaram R$ 7.694.8 bilhões (em valores realizados), que significam menos de R$ 770 milhões/ano, em média, ou seja, valores pouco relevantes frente às carências do setor. De maneira independente, outros recursos mais significativos foram aportados por alguns estados e suas concessionárias, no âmbito de amplos programas ambientais de despoluição, financiados por agências multilaterais, como Banco Mundial ou Banco Interamericano (Zveibil, op. cit.).
Após novas mudanças político-institucionais, a partir de 2003, com a criação do Ministério das Cidades e da Secretaria Nacional de Saneamento, com a melhora do quadro fiscal brasileiro e, principalmente, com o advento da Lei da Política Nacional do Saneamento Básico (Lei 11.445/07), vários programas, linhas de financiamento, além de emendas parlamentares se voltaram para o apoio e disponibilização de recursos para o setor, não apenas para as concessionárias estaduais, mas também para os Serviços Autônomos de Águas e Esgotos – SAAEs municipais, sem deixar de apoiar novas concessões privadas. Os dados e indicadores do saneamento desde a aprovação da Lei (2007) são favoráveis, tanto quando se analisam os investimentos, principalmente no período do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) Saneamento, como quando se analisa o crescimento de importantes aspectos de gestão, como a regulação do planejamento e a formalização de contratos para a prestação dos serviços.
Nos períodos do PAC1 (2007-2010) e do PAC2 (2011-2014), foram comprometidos recursos da União, entre o Orçamento Geral da União (não onerosos) e empréstimos (onerosos), valores na ordem de R$ 98,4 bilhões correntes, o que representa um investimento anual em média de apenas R$ 12,3 bilhões, observando-se que aproximadamente R$ 60,3 bilhões haviam sido efetivamente desembolsados, significando 61,3% do total até novembro de 2016. (ASSEMAE, 2020).
O Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab), promulgado em 2013, previa metas para investimentos da ordem de R$ 148 bilhões em abastecimento de água e R$ 224 bilhões em esgotamento sanitário, ao longo de 15 anos, totalizando R$ 373 bilhões – cerca de R$ 24,9 bilhões por ano, com vistas à universalização do atendimento. Como já observado, de 2007 a 2014 foram investidos em média R$ 12,3 bilhões ao ano e, em 2018, esse valor ficou em R$ 13,1 bilhões, portanto, insuficiente para o atendimento das metas propugnadas.
Já em 2020, novamente em um cenário de profundas mudanças político-institucionais no país, é promulgado o Novo Marco Legal do Saneamento Básico. Portanto, se a Lei nº 11.445/07, conhecida como a Lei da Política Nacional de Saneamento Básico, levou quase 15 anos para sua promulgação desde o projeto de Lei PLC 199, em 1993, esta atualização do marco regulatório do saneamento básico ocorre em período de pouco mais de um ano, após nova mudança político-institucional no país, com poucos e insuficientes debates entre os inúmeros atores públicos, privados e sociedade civil.
Para a construção do Novo Marco Regulatório, não foi promovido e institucionalizado pelo executivo um processo participativo amplo, com fóruns e espaços de debates prévios ao encaminhamento do projeto do executivo ao legislativo, como era a praxe nos governos anteriores após a redemocratização do país, especialmente nos temas mais relevantes de políticas públicas urbanas. Essa ausência de diálogo com os múltiplos grupos de interesse e com as entidades mais relevantes do setor – característica da estratégia e perfil do atual governo – explicitou-se e agravou-se com a justificativa da pandemia, que passou a impedir, a partir de março de 2020, a realização de eventos e audiências públicas presenciais, restando, do ponto de vista formal, apenas as exigências legais de ritos para o encaminhamento dos projetos de lei, via web.
De uma forma ou de outra, como já amplamente veiculado pela mídia e registrado na fala do ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles (naquele caso, no tema do meio ambiente), a COVID -19 representou a oportunidade de “passar a boiada” e aprovar leis e decretos que traduzem o interesse do atual governo e de seu grupo de sustentação. No caso do novo Marco legal do Saneamento Básico isso também ocorreu.
Assim, as entidades vieram se manifestando por meio da internet, de suas redes sociais, tanto no período de debates das medidas provisórias em tramitação, quanto no processo de aprovação final do projeto de lei no Congresso Nacional, e até posteriormente à sua aprovação, com arguição de constitucionalidade ou tentativas de mandatos de segurança, sem resultados efetivos. Em especial, entidades como a Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental – ABES, a Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento – AESBE e a Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento – ASSEMAE (que possui dois mil municípios associados) publicaram inúmeros manifestos, organizaram “lives” ou debates, artigos, utilizando diversos meios de comunicação, e buscaram influenciar os parlamentares, com pouco sucesso.
Conforme indica o próprio cabeçalho, a Lei nº 14.026, de 16 de julho de 2020, “Atualiza o marco legal do saneamento básico e altera a Lei nº 9.984, de 17 de julho de 2000, para atribuir à Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) competência para editar normas de referência sobre o serviço de saneamento […], a Lei nº 11.107, de 6 de abril de 2005, para vedar a prestação por contrato de programa dos serviços públicos de que trata o art. 175 da Constituição Federal, a Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007, para aprimorar as condições estruturais do saneamento básico no País”.
O grande chamariz para sua aprovação foi a expectativa do governo de alavancar entre R$ 600 e R$ 700 bilhões em investimentos, boa parte deles privado, garantindo assim a universalização de acesso e a melhoria na qualidade dos serviços.
Tais metas são colocadas em dúvida por vários atores do setor, que contestam diversos itens de seu conteúdo, especialmente no tocante ao viés privatista da prestação dos serviços de saneamento básico, frente ao caráter universal e público propugnado pela Constituição, e pela fragilização do ente municipal como titular dos serviços, bem como inúmeros outros pontos. Mais do que isso, após a “intervenção” do presidente na direção da Petrobras e a reação dos investidores, que se afastam do país pelo descrédito da política econômica anunciada, os números propugnados na concepção do novo Marco Legal do Saneamento Básico podem ir por água abaixo.
Enquanto isso, a ANA – cuja missão original era de regulamentação sobre o uso dos recursos hídricos – foi ampliada em tema para o qual não estava estruturada e corre agora para ampliar e capacitar seus quadros, visando cumprir as novas e complexas demandas relativas ao saneamento.
Por seu turno, o BNDES segue com as modelagens e editais para concessões e PPPs de empresas de saneamento básico, os quais, segundo anunciava no final de 2020, poderiam gerar cerca de 165 bilhões de reais de aportes para o Brasil, sendo seis leilões nos seguintes estados: Acre, Alagoas, Amapá, Ceará, Espírito Santo, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro a partir do primeiro trimestre de 2021, com um potencial de geração de 1,6 milhão de empregos. Até o momento, consubstanciou-se apenas o caso da Região Metropolitana de Maceió, com a concessão da prestação dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário à CASAL, que permanecerá fornecendo a água captada e tratada.
E a geosmina? Para o estado do Rio de Janeiro está prevista para abril deste ano a concessão a operadores privados dos serviços em blocos de municípios, ficando mantida com a CEDAE a produção de água tratada nos sistemas Guandu e Imunana-Laranjal. Ou seja, a geosmina ainda é de responsabilidade da Companhia… E a (in)segurança hídrica da Região Metropolitana não se altera estruturalmente.
Contudo, “para não dizer que não falei de flores”, investimentos importantes na redução da carga de poluição por esgotos lançados nos rios que contribuem para a bacia do rio Guandu estão previstos para os dois primeiros anos de concessão, o que poderá contribuir para minimizar a reincidência do fenômeno.
Em paralelo, em uma iniciativa tímida e tardia, mas importante, no final de fevereiro o governo estadual lançou o Programa de Segurança Hídrica (Prosegh), uma plataforma para projetos sobre aumento de oferta de água, recuperação de mananciais, reflorestamento, redução de riscos de secas e prevenção contra inundações e acidentes ambientais. O objetivo é catalogar as iniciativas e obras dessa natureza, públicas e privadas, pelo estado, com o objetivo de compartilhamento de informações, experiências e oferta de novas tecnologias e possíveis fontes de financiamento. Será suficiente para enfrentar novas crises hídricas enfrentadas pelo Rio, como as dos períodos de secas e a volta da geosmina?
REFERÊNCIAS BILBIOGRÁFICAS
ASSEMAE: O Panorama das últimas décadas do saneamento básico brasileiro. Brasília, DF, 2020.
ZVEIBIL, Victor Zular. A Reforma do Estado e o Setor Saneamento: uma trajetória incompleta. Tese de Doutorado. ENSP/Fiocruz, RJ, 2003.
________. Saneamento Básico: Novas oportunidades para os municípios. In: Revista de Administração Municipal – RAM – IBAM, ano 53, n° 265.
***