Governar com minoria legislativa
Um dos princípios fundamentais da Constituição brasileira é a proteção dos direitos das minorias, elemento essencial para o fortalecimento e a legitimidade da democracia. Essa proteção assegura que todos os grupos — independentemente de sua origem étnica, religião, orientação sexual, identidade de gênero ou posição social — tenham voz e estejam resguardados frente à vontade da maioria.
No evento na Faculdade de Direito do Largo do São Francisco, na USP, que comemorava os quarenta anos da redemocratização, o ex-presidente José Sarney teceu críticas à celeridade com que mudanças consituticionais têm sido aprovadas:
“Um presidente de Senado chega e diz ‘está aprovada a emenda constitucional. E vamos discutir agora a segunda votação, em uma sessão de cinco minutos. E vamos ter a segunda sessão, em cinco minutos. Está encerrada a discussão’. E está aí, aprovada em dez minutos“. (Coluna Maquiavel, Veja)
Ainda segundo o ex-presidente, este cenário, que resultou em impressionantes 135 emendas constitucionais – quase metade dos 250 artigos originais da Constituição – não é apenas um sinal de hiperatividade legislativa, mas também um indicativo de uma fragilidade democrática que merece ser dissecada.
Fiquei realmente impressionado com esse relato e compartilhei a coluna da Veja com alguns grupos no zap. A resposta foi imediata: muita gente confirmou que essa é a realidade e me enviou vários artigos acadêmicos e reportagens sobre o assunto. Resolvi então reunir o que aprendi nesta nota.
No caso especifico de Propostas de Emendas Constitucionais (PECs), tanto o regimento interno da Câmara quanto o do Senado exigem que elas sejam aprovadas por três quintos dos parlamentares em dois turnos, com um intervalo de cinco sessões entre as duas votações. Esse intervalo não é um detalhe burocrático, mas sim uma garantia democrática. Ele permite que os parlamentares reflitam sobre a proposta, discutam com suas bases eleitorais, consultem assessores e formem uma opinião fundamentada antes da segunda votação.
O “Rolo Compressor” da Maioria
Para acelerar sua tramitação, muitas vezes a maioria parlamentar, no afã de aprovar suas pautas, frequentemente se vale de diversas manobras regimentais para acelerar a tramitação de PECs, exercendo o que popularmente se chama de “rolo compressor”, como por exemplo:
- Apensamento estratégico: A proposta é apensada à outra PEC que já esteja em tramitação avançada, permitindo que ela não precise passar por uma comissão especial própria.
- Sessão relâmpago: Convocação de uma sessão extraordinária, que dure poucos minutos, mas que seja contabilizada para fins de cumprimento do prazo
- Eliminação do intervalo entre turnos: Votação da PEC em dois turnos no mesmo dia, eliminando o intervalo de cinco dias entre as votações.
- Votação noturna: Votação em horários avançados da noite, buscando minimizar a visibilidade da votação e, consequentemente, o escrutínio público e da imprensa.
PEC Kamikaze/PEC das Bondades (2022)
Um exemplo emblemático dessas manobras regimentais foi a tramitação da PEC 01/2022, popularmente conhecida como “PEC Kamikaze” ou “PEC das Bondades“, uma aposta do Bolsonaro para aumentar a popularidade meses antes da eleição.
Originalmente apresentada no Senado em fevereiro de 2022 pelo senador Carlos Fávaro (PSD-MT), essa PEC tinha como objetivo criar benefícios para caminhoneiros devido ao aumento do diesel. Posteriormente, foi modificada para incluir o aumento do Auxílio Brasil de R$ 400 para R$ 600, além de outros benefícios sociais, com um impacto orçamentário estimado em R$ 41,2 bilhões.
De acordo com o Brasil de Fato (2022), o ex-presidente da Câmara, Arthur Lira, utilizou sua prerrogativa como presidente da Casa para levar a proposta diretamente ao plenário, sem discussão prévia em comissão especial, restringiu a possibilidade de apresentação de emendas por parlamentares e convocou uma sessão extraordinária às 6:30h da manhã, de apenas um minuto, para que fosse contabilizada como parte do tempo mínimo de deliberação exigido.
Segundo reportagem do Estado de Minas (2022), Lira recorreu ao apensamento estratégico, juntando a proposta que declarava estado de emergência a outra já em estágio avançado de tramitação e que havia sido analisada pelas comissões — a PEC 15/2022 (PEC dos Biocombustíveis).
Ainda segundo essa reportagem, foi aprovado um requerimento que eliminou o intervalo regimental de cinco dias entre as votações em primeiro e segundo turnos, permitindo que ambos ocorressem no mesmo dia, 7 de julho de 2022.
Dois anos depois, essa PEC foi declarada inconstitucional por oito votos a dois no Supremo Tribunal Federal (STF). A maioria da Corte entendeu que a proposta violou princípios fundamentais da Constituição, como a anualidade orçamentária, a liberdade do voto e a segurança jurídica, além de criar um estado de exceção sem as devidas garantias.
Kit Obstrução da Minoria
A minoria também possui um arsenal de estratégias regimentais para tentar obstruir o avanço de pautas que considera prejudiciais (o chamado “kit obstrução”).
Entre os recursos procedimentais mais comuns utilizados pela minoria para a obstrução, conforme Bezerra (2013), destacam-se:
- Requerimento de adiamento de votação: Este instrumento permite que um parlamentar ou bloco solicite o adiamento da votação de uma matéria, forçando uma nova discussão ou concedendo tempo para a articulação de votos contrários.
- Requerimento de retirada de pauta: Similar ao adiamento, busca a exclusão temporária ou definitiva de uma proposição da pauta de votação, impedindo sua deliberação imediata.
- Apresentação de emendas: Mesmo que muitas delas sejam meramente protelatórias, pode atrasar consideravelmente a tramitação, uma vez que cada emenda precisa ser analisada e votada.
- Pedido de verificação de quórum: Frequentemente utilizado para testar a presença dos parlamentares e, em momentos de menor quórum, impedir a votação de matérias que exijam maioria qualificada, como as PECs.
- Discursos protelatórios (filibustering): O uso extensivo do tempo de fala por parte dos parlamentares da oposição durante as sessões plenárias ou em comissões pode consumir o tempo disponível para a votação de projetos.
- Destaques para votação em separado: A solicitação de destaque para a votação de partes específicas de uma PEC força a deliberação fragmentada, estendendo o tempo de votação e criando oportunidades para manobras.
- Obstrução via Comissões: A oposição pode atuar para atrasar a análise de uma PEC em comissões, por meio de pedidos de vista, audiências públicas e outras discussões prolongadas, utilizando o “interstício regimental” de cinco dias entre as votações em primeiro e segundo turnos.
Em 2021, a maioria parlamentar aprovou a Resolução 21/2021 que alterou e eliminou dispositivos usados pela minoria para protelar votações (o chamado “kit obstrução”). Embora a resolução não modifique diretamente os artigos do Regimento Interno da Câmara de Deputados (RICD) que tratam especificamente do rito das PECs (arts. 201 a 203 do RICD), as alterações do processo legislativo, em regra geral, afetam transversalmente a tramitação de todas as proposições, incluindo as emendas constitucionais.
Segundo a reportagem da Folha de São Paulo intitulada “Câmara dos Deputados aprova projeto que engessa oposição”, entre as principais mudanças implementadas pela Resolução 21/20, destacam-se a revogação de dispositivos que tratavam da prorrogação das sessões e a eliminação da menção a prazos de duração para sessões ordinárias e extraordinárias. Anteriormente, as sessões tinham durações fixas, permitindo que a oposição utilizasse requerimentos e tempos de fala para estender os debates, muitas vezes empurrando a votação para outra sessão. Com a nova regra, argumenta-se que uma sessão pode prosseguir até que toda a pauta seja votada, diminuindo a eficácia das táticas de adiamento.
Outras modificações incluíram a redução do tempo de fala para o encaminhamento de votação (de cinco para três minutos para o autor do requerimento e o deputado contrário) e a permissão para iniciar a votação, mesmo com a orientação das bancadas ainda em andamento.
A apresentação de destaques simples por parlamentares individuais também foi restringida, passando a exigir aprovação unânime dos líderes partidários. Adicionalmente, deputados foram impedidos de usar a palavra em sentido contrário àquele para o qual se inscreveram, sob pena de terem a palavra cassada. A ordem de votação também foi alterada: em caso de rejeição de um substitutivo (ou na ausência deste), a proposição original passou a ser votada antes das emendas.
Caminhos para o Fortalecimento Democrático
Este cenário complexo e em constante transformação do processo legislativo brasileiro convida a uma reflexão mais profunda. Quando diferentes perspectivas são consideradas nas decisões políticas, as soluções tendem a ser mais justas, eficazes e representativas. Ao garantir que todas as correntes políticas sejam ouvidas e respeitadas, a democracia torna-se mais robusta, resiliente e capaz de enfrentar desafios com legitimidade e equilíbrio.
Nesse sentido, é fundamental fortalecer os espaços de debate e deliberação no Parlamento, assegurando o pleno funcionamento das comissões especiais, com prazos adequados para discussão e a participação efetiva de diversos setores da sociedade.
Para o leitor que se sentiu cativado pela intrincada dinâmica do processo legislativo e deseja se aprofundar no tema, recomendo a leitura da tese “Obstrução Parlamentar: Instrumentos Regimentais Obstrutivos – análise no contexto da Resolução nº 21/2021 da Câmara dos Deputados“, defendida por Hugo Henry Martins de Assis Soares (UFMG, 2024), e do Texto para Discussão do Ipea nº 0228/2017, intitulado “Meaning of Time: Legislative Duration in the Brazilian Congress”, de autoria de Taeko Hiroi e Lúcio Rennó.
Fiquemos atentos, pois o regimento interno é, e continuará sendo, um campo de batalha crucial para a saúde de nossa democracia.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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