Güeros percorre as ruas da Cidade do México e traça um painel crítico de uma geração.
Balões de festa cheios de água, o piso maltratado pelo tempo, a câmera estática. O som de passos, um tênis, um braço jovem, o ruído do contato da mão com o balão. A tela escurece, um telefone toca insistentemente. A imagem retorna, um bebê chora a plenos pulmões, a chamada telefônica persiste, a mãe enlouquece, a câmera agora é febril. A mulher se veste apressada, põe o bebê no carrinho, ganha a rua, a câmera acompanha seu ritmo frenético, até mudar o foco para o alto a tempo de acompanhar o balão cheio de água em queda livre rumo ao alvo: splash!
Desde a cena de abertura de “Güeros” (2014), filme de estreia do diretor mexicano Alonso Ruizpalacios, os ruídos e movimentos de câmera são como se tivessem vida, como se mudassem conforme os sentimentos dos personagens. Melhor Filme Estreante no 64º Festival de Berlim, Melhor Filme Latino-Americano em San Sebastian e vencedor de cinco estatuetas no Prêmio Ariel, o Oscar mexicano, “Güeros” é, acima de tudo, um road movie poético, realista e tocante, com momentos de grande força expressiva, acentuados pela fotografia em preto e branco de Damian García.
O Neorrealismo de Ruizpalacios
O cinema rodado pelas ruas, estilo visual quase documental, locações reais, a realidade fixada sem manipulações e preconceitos. Qualquer semelhança com o Neorrealismo italiano não é mera coincidência. Ao retratar a Cidade do México e sua gente, Ruizpalacios, que assina também o roteiro, insere em sua linguagem poética aspectos sociais, políticos e existenciais e aborda temas importantes como racismo, luta de classes e movimento estudantil. Traça um painel crítico de uma geração e nos apresenta a cidade como paisagem viva. A trilha sonora, que inclui clássicos da música mexicana como “Farolito”, de Augustín Lara (1897-1970), enriquece ainda mais a força expressiva e poética do filme.
A história é ambientada em 1999, durante a greve geral dos estudantes universitários da UNAM (Universidade Nacional Autônoma do México), e envolve três personagens marcados pela apatia e o tédio, alimentados pela frustração que paira sobre suas vidas. O adolescente Tomás (Sebastián Aguirre), não mais suportado pela mãe por conta de suas travessuras, é enviado à Cidade do México para passar uns tempos com o irmão, Federico (Tenoch Huerta), que divide um apartamento sujo, escuro e caótico com o amigo Santos (Leonardo Ortizgris). Federico tem a pele morena, Tomás é güero, como é chamado aquele que tem a pele clara e/ou é loiro. Por isso, assim que é apresentado ao garoto, Santos não esconde o estranhamento: “Você não é escurinho como teu irmão” – uma observação recorrente no filme.
A câmera estática: tédio e apatia
Com a UNAM em greve, Federico e Santos, ambosuniversitários, vivem confinados no apartamento e passam os dias sem fazer praticamente nada: fumam, jogam cartas, roubam a eletricidade da vizinha e, quando isso não é possível, vivem às escuras. Federico, também chamado de Fede e apelidado sugestivamente de Sombra, tem síndrome do pânico. Tomás, que teria sido enviado pela mãe para ser “salvo” pelo irmão, se espanta ao adentrar o apartamento pela primeira vez. De fato, logo nos minutos iniciais, nos sentimos confinados no lugar, espremidos entre as paredes e a sujeira. A câmera estática, com raros movimentos, acompanha a improdutividade dos três personagens.
Um dia, folheando o jornal, Tomás encontra a notícia de que o ídolo do rock mexicano que marcara sua infância e a de Fede, Epigmenio Cruz (Alfonso Charpener), estava muito doente e prestes a morrer. Eles decidem, então, partir em busca deste roqueiro obscuro e esquecido, mas que, segundo Tomás, teria feito Bob Dylan chorar. Deveriam encontrá-lo onde quer que estivesse, para autografar a fita cassete que o garoto trazia sempre consigo e não se cansava de ouvir. Nesses momentos, em que Tomás, Fede ou Santos colocam os fones de ouvido para escutar Epigmenio, o trabalho na construção dos ruídos rouba a cena: enquanto a música parece transportá-los para outra realidade, ouvimos somente o som abafado da fita rodando.
A câmera livre: paisagem viva
A busca por Epigmenio Cruz mobiliza Sombra, Santos e Tomás para a experiência da vida, para a descoberta de algo que faça sentido além da apatia e do caos. É quando “Güeros” mais se assemelha a um road movieneorrealista. De carro, os três personagens ganham as ruas, a Cidade do México e suas possibilidades se apresentam, eles se deparam com diferentes situações, algumas delas tocantes. É nesse momento, também, que a câmera passa a ser mais livre, tem outra dinâmica. Principalmente depois que resolvem conhecer a ocupação na UNAM, a assembleia dos grevistas pegando fogo, diferentes facções se digladiando, a câmera acompanhando o ritmo frenético dos debates.
Na universidade, Sombra e Santos reencontram uma das líderes da greve universitária, Ana (Ilse Salas), que se junta a eles e a Tomás na busca por Epigmenio. Sombra é apaixonado por Ana, a quem chama de Anita, embora ela não saiba. Apesar de namorar um líder grevista de uma facção rival, Ana aparenta gostar de Sombra, mas parece não ligar para as opiniões dele sobre o movimento estudantil. Tampouco Tomás: “Você não vai às passeatas?”, quis saber, ainda no início do filme. Ao ver o irmão balançar a cabeça, perguntou se ele era um fura-greve. “Não brinque com essa palavra”, disse Federico. Na verdade, ele e Santos não são despolitizados, muito menos fura-greves, apenas parecem estar absorvidos por outras preocupações. Mas como Tomás insistisse, Fede se saiu com esta: “Estamos em greve de greve.”
Humor e autocrítica
Diálogos engraçados, como o descrito acima, são mais um atrativo desta obra-prima do cinema latino. Em outro momento, Sombra explica a Tomás por que eles não saem de casa: “Para que sair, se vamos ter que voltar?” Mais adiante, quando Anita já se juntara ao trio na busca por Epigmenio e precisavam fazer uma hora para seguir a próxima pista que os levaria ao encontro do ídolo, dá-se o seguinte diálogo: “Vamos à sua casa, eu só preciso de cerveja gelada”, sugere Anita. “Só há duas e estão quentes”, diz Tomás. “Vamos comprar algumas no Oxxoe ouvir Epigmenio”, propõe Anita. “O som não funciona”, explica o garoto. “Então vamos ver um filme”, ela insiste. “A tv não funciona”, ele diz, e Ana se dá por vencida: “Então vamos a uma festa”.
A festa era de gente do cinema. Em pouco tempo se cansaram da casa e das pessoas: “Vamos embora ou querem ficar aqui com os riquinhos?”, provocou Ana. Pouco antes da partida, à beira da piscina, Sombra diz a Santos o que pensa daquela gente: “Maldito cinema mexicano. Eles pegam um monte de mendigos, filmam em preto e branco e dizem que estão fazendo arte. E esses diretores de merda vão ao Velho Mundo e dizem aos críticos franceses que nosso país é cheio de chauvinistas, delinquentes, vendidos, ladrões, fraudulentos, traidores, bêbados e cafetões. Mas se vão nos humilhar, deviam fazer com o dinheiro deles, não com o dos contribuintes.”
A fala de Fede é genial, talvez a mais emblemática do filme. Resta saber, para encerrar, se o ex-roqueiro que teria feito Bob Dylan chorar será encontrado para autografar o cassete de Tomás; se Ana e Sombra dirão o que sentem um pelo outro; se Sombra vencerá a síndrome do pânico; se ele e Santos vão aderir à greve universitária e se juntar às manifestações; se os dois, depois do reencontro com as ruas, depois de tudo o que viram, viveram e sentiram, vão enfim descobrir algo que dê sentido às suas vidas.
O filme está disponível no Netlix.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli
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