O IBGE lançou no dia 24 de fevereiro os resultados da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio (PNAD) para ocupação, desemprego e rendimentos das famílias no Brasil, nas Macrorregiões do país e nas Unidades da Federação. Neste artigo, procuramos fazer uma análise destes resultados enfatizando dois pontos. De um lado, vamos comparar os resultados gerais da PNAD com os resultados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED) do Ministério do Trabalho e Previdência (MTP) que veio a público no final de janeiro deste ano. De outro lado, procuraremos comparar a dinâmica do emprego e da renda revelada pela PNAD no Brasil com a dinâmica dos três estados da Região Sul, com ênfase no Rio Grande do Sul.

Desde logo, os resultados da PNAD confirmam o bom desempenho do mercado de trabalho em 2021 revelado pelo CAGED e que serviram de base às manifestações ufanistas do ministro Onyx Lorenzoni, titular da pasta, em rede televisiva no dia 31 de janeiro de 2022. Mas a PNAD também revela um outro lado da história, muito menos alvissareira e que ainda não foi contada. Senão vejamos.

De acordo com os dados do Novo CAGED, teriam sido criados 2,7 milhões de novos postos de trabalho formais no Brasil em 2021. Tomando por referência o saldo de 46,2 milhões de empregos formais em 31 de dezembro de 2020 informados pela Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) do mesmo Ministério, a taxa de crescimento do emprego formal teria sido de 5,91% no ano passado e o saldo final de ocupados formais teria sido de 48 milhões e 967 mil[1].

Estes resultados positivos no saldo de ocupados são parcialmente confirmados pela PNAD. Esta pesquisa aponta para a criação de 8,5 milhões postos de trabalho (+9,8%) no Brasil entre o quarto trimestre de 2021 e o quarto trimestre de 2020, divididos nas seguintes categorias:

  1. Mais 4,8 milhões empregados no setor privado (+ 11,5%);
  2. Mais um milhão empregados doméstico (+22,1%);
  3. Mais 2,998 milhões ocupados como “conta-própria” (+13,1%);
  4. Mais 26 mil ocupados como empresário-empregadores (+ 0,7%);
  5. Menos 305 mil funcionários públicos e estatutários (-2,6%);
  6. Menos 53 mil ocupados em atividades não remuneradas no auxílio à família (-2,7%).

Surpreendentemente, a despeito desta performance aparentemente excelente no plano da ocupação, a PNAD também nos revela que, entre o quarto trimestre de 2020 e o quarto trimestre de 2021, o rendimento real médio mensal dos ocupados no Brasil caiu de R$ 2.742,00 para R$ 2.447,00. Esta queda (-10,7%) superou o crescimento do número de ocupados (9,8%). O que significa dizer que, a despeito de, passado um ano, haver 8 milhões e meio de pessoas a mais ocupadas no Brasil, a renda real total de todos os ocupados ao final de 2021 é inferior à renda que o conjunto das famílias obtinham ao final de 2020. Há quase nove milhões a mais de pessoas trabalhando, mas a renda do conjunto das famílias, ao invés de aumentar, declinou. Como isto é possível?

Há dois fatores que se somam na explicação dessa performance. Em primeiro lugar, como explicação imediata, temos a elevada taxa de inflação de 2021: o IPCA (índice de preços ao consumidor ampliado) foi de 10,06%. Este valor é muito próximo da queda dos rendimentos reais, revelando que a força de trabalho retornou para o mercado com ganhos nominais equivalentes àqueles auferidos no ano anterior, a despeito da elevação dos preços. Porém, subjacente a este fator explicativo imediato há um elemento estrutural: a precarização e informalização universal. Expliquemo-nos.

Como vimos acima, o crescimento do número de empregados no setor privado foi de 11,5%. Mas o crescimento do número de empregados com carteira assinada foi inferior: 9,2%; enquanto o crescimento dos empregados sem carteira foi de 18,3%. O crescimento percentual do emprego doméstico foi de 22,1%; com carteira assinada, foi de 17,5% (203 mil postos de trabalho) e sem carteira assinada foi de 23,7% (824 mil empregados). No setor público, houve queda do número de empregados, revelando a eficácia da política neoliberal em curso. Mas é nos detalhes que vem à tona toda a sua perversidade: a queda no número de funcionários públicos estatutários foi de 611 mil empregados, havendo contratação líquida de 105 mil empregados com carteira assinada e de 201 mil empregados sem carteira (contrato eventual ou terceirizados).

Mas isto não é tudo. A precarização/ informalização não se dá apenas no segmento dos empregados, mas também atinge o segmento “empresarial” e dos “conta-própria”. Vimos que houve uma ampliação de 26 mil no número de empresários-empregadores no país em 2021. Mas esta dinâmica foi diferenciada. Houve uma queda absoluta – de -87 mil – no número de empresários-empregadores com CNPJ; mais do que compensada pela elevação – em 113 mil – no número de empresários-empregadores sem CNPJ. Qual a razão? Aparentemente, o fato de que a falta de controles sobre a evasão fiscal vem compensando: de acordo com a PNAD, a queda média dos rendimentos dos empresários sem CNPJ foi de “apenas” -7,6%, enquanto a queda dos rendimentos dos empregadores com CNPJ foi a segunda mais expressiva dentre todas as categorias profissionais, em torno de -14%. A única categoria profissional com queda de rendimentos ainda mais expressiva que a dos empresários com CNPJ foi a de funcionários públicos não-estatutários (com carteira assinada): -17%.

Como não poderia deixar de ser, a precarização também se revela no campo dos “conta-própria”. Percentualmente, o número de “conta-própria” com CNPJ aumentou mais (16,6%) em 2021 do que sem CNPJ (12,1%). Afinal, o estatuto das MEI, de 1º. de julho de 2008, impõe uma exação fiscal mínima quando comparada aos benefícios derivados da formalização, seja para quem contrata seus serviços, seja para o próprio empreendedor (no plano previdenciário). Mas a discrepância em termos absolutos entre conta-própria formalizados e informais ainda é enorme: dos quase três milhões de “novos conta-própria” de 2021, apenas 911 mil têm CNPJ; enquanto 2 milhões e oitenta e sete mil preferem operar na informalidade. O motivo é facilmente compreensível: a média de rendimentos dos MEI sem CNPJ foi de R$ 1.482,00 reais em 2021. Este valor corresponde a 60% do rendimento médio de todos os brasileiros ocupados, encontrando-se pouco acima (37%) do salário mínimo do ano de 2021. Um rendimento tão baixo que alimenta a preferência pelo consumo imediato em detrimento do pagamento das taxas (por irrisórias que sejam) associadas à formalização.

Em suma: independentemente da perspectiva que se adote, tudo o que se vê é precarização, informalidade, evasão fiscal, e queda do poder de compra das famílias. Esta é a realidade “comemorada” com pompa e circunstância por um governo que – cada vez fica mais claro – não alcança diferenciar realidade, desejo e delírio.

Como se isto não bastasse, a realidade do Rio Grande do Sul é ainda mais triste. Aqui, como em todos os estados do Brasil, a taxa de desocupação[2] também caiu. Mas enquanto esta taxa cai 3,0 pontos percentuais no Brasil, cai 3,1 p.p. no Paraná, e cai 1,1 p.p em Santa Catarina, ela cai apenas 0,5 p.p. no RS. Alguém poderia alegar que esta queda foi menor porque a taxa de desocupação já era menor no RS (8,6%) no último trimestre de 2020 em relação ao Brasil (14,2%). Mas esta explicação não se sustenta. Na verdade, a taxa de desocupação na Região Sul é, sistematicamente, inferior à desocupação no resto do Brasil, cujo índice é puxado pelo Nordeste (onde as oportunidades de ocupação são cronicamente inferiores) e pelo Sudeste (onde em torno de 70% da ocupação é determinada por emprego em sentido rigoroso, por oposição a conta-própria). E, dentro da Região Sul, a taxa de desocupação do RS ao final de 2021 (8,1%) ficou significativamente acima da taxa de SC (4,3%) e do PR (7,0%). E isto a despeito de existirem alguns fatores estruturais que deprimem a taxa de desocupação no RS, a ver:

  1. Percentagem da população ocupada na agricultura (em especial, na agricultura familiar) é mais elevada no RS (12,2%) do que no Brasil (9,7%), em SC (9,4%) e no PR (10,6%);
  2. A percentagem da população ocupada sem remuneração em auxílio da família é maior no RS (3,21%) do que no Brasil (2,14%), em SC (2,03%) e no PR (2,06%);
  3. A percentagem da população em idade ativa na força de trabalho no RS (64,8%) é menor do que em SC (67%) e no PR (66,5%). Este último fator é da maior importância, pois a taxa de desocupação não é calculada em função do número total de pessoas em idade ativa que não trabalham, mas em função do número de pessoas na força de trabalho. Só é considerado desempregado ou desocupado aquele que busca emprego-ocupação e não encontra. Como explicar, então, uma performance tão ruim?

O primeiro fator explicativo encontra-se no dinamismo lamentável das micro e pequenas empresas do estado ao longo de 2021. Em um estudo recente, o Sebrae demonstrou que as micro e pequenas empresas (MPEs) foram responsáveis por 78% dos empregos formais criados no Brasil em 2021. Ora, dentre as 27 Unidades da Federação, o RS ficou em último lugar na geração percentual de empregos por MPEs. Por quê? A PNAD ajuda a entender a razão desta triste performance: a despeito do crescimento discreto (+ 26 mil), houve aumento líquido do número de empresários/empregadores no Brasil em 2021 (+ 0,7%). Mas no RS o número total de empresários declinou de 301 mil em 2020 para 276 mil em 2021. Poucos estados apresentaram queda absoluta do número de empresários. Mas em nenhum outro o valor absoluto deste declínio foi tão elevado: menos 24 mil empresários, -8,2% do total. E a situação só não foi pior porque houve um aumento de 13 mil no número de empresários sem CNPJ: 37 mil empresas com CNPJ abriram falência.

Como se isto não bastasse, a precarização do trabalho no RS avançou de forma muito mais acelerada e radical do que no resto do Brasil. Do total dos 8,5 milhões de postos de trabalho criados no Brasil em 2021, 22,54% foram de empregados no setor privado sem carteira e 35,18% foram de conta-própria (69,61% dos quais sem CNPJ). No RS, dentre os 317 mil novos postos de trabalho, 35,96% são empregados no setor privado sem carteira e 44,48% são conta-própria (64,54% dos quais sem CNPJ). Dentre os mais de 1 milhão de novos empregados domésticos no Brasil em 2021, 79,84% não têm carteira assinada. No RS a geração de emprego neste segmento foi de apenas 26 mil postos (mais um indicativo da crise econômica e da perda de poder de compra da classe média), dos quais 92,31% são contratações informais.

Do nosso ponto de vista, estes resultados absolutamente trágicos não podem ser pensados ou entendidos em separado. Diminuição do número absoluto de micro e pequenas empresas formais, ampliação do emprego informal acima da média nacional, taxa de desocupação mais elevada da Região Sul são elementos de um mesmo todo. E o que eles revelam é o fracasso das políticas públicas que vêm sendo implementadas em nosso estado nos últimos anos. Se é que se pode chamar de “políticas públicas” as privatizações, os subsídios a grandes empresas e a ausência de quaisquer políticas de apoio aos empreendedores individuais e às micro, pequenas e médias empresas.

E como se não bastasse ter de conviver com este triste cenário de decadência econômica e deterioração das condições de vida e de trabalho dos segmentos menos favorecidos da população, ainda temos que ver e ouvir o governador Leite dizer que nosso estado está “ajustado”. Para o deleite e aplauso da mídia obtusa e da “elite” conservadora, incapazes, ambas, de entender que os motivos profundos de nossa decadência econômica e política não são outros para além da realização “bem sucedida” do programa neoliberal de destruição do Estado e de sua capacidade de regular e apoiar com eficácia e efetividade a iniciativa privada.

[1] Vale observar que, apesar da RAIS e do CAGED serem sistemas estatísticos do Ministério do Trabalho e Previdência (MTP) voltados à sistematização da evolução do emprego formal, eles adotam metodologias distintas, de sorte que comparar diretamente as duas bases envolve uma discreta margem de erro. Infelizmente, os dados da RAIS de 2021 ainda não foram disponibilizados pelo MTP e somos obrigados a realizar este desvio analítico. As discrepâncias, entretanto, são muito pequenas e não afetam de forma significativa quaisquer conclusões.
[2] Como a PNAD avalia todas as formas de ocupação – inclusive “conta-própria”, empresário/empregador, trabalho doméstico sem carteira assinada e ocupação não remunerada em apoio à família – o termo tecnicamente correto é “taxa de desocupação” e não “taxa de desemprego”. Não obstante, os termos são intercambiáveis e, usualmente, tanto a mídia quanto os economistas, quando escrevem para leigos, usam a segunda expressão para tornar a ideia mais facilmente apreensível. Neste texto, preferimos utilizar a expressão mais rigorosa.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.

Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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