Na esteira dos debates que acontecem por ocasião do mês da mulher, o IBGE divulgou a segunda edição do estudo “Estatísticas de Gênero: Indicadores Sociais das Mulheres no Brasil”, com base nas recomendações da ONU para monitoramento das condições de vida das mulheres. Divulgações dessa natureza são fundamentais para reforçar que essa é uma data forjada na luta de mulheres operárias por melhores condições de vida e lembrar que as mulheres estão ainda sub-representadas politicamente, impossibilitadas de competir em situação de igualdade com homens no mercado de trabalho, vítimas de violência doméstica e assédios de toda sorte e com direitos sexuais e reprodutivos negados.

O estudo atenta ainda para a heterogeneidade do conjunto de mulheres trazendo informações com recorte racial e outras características relevantes, partindo da premissa de que vulnerabilidades podem ser exponenciadas e melhor visualizadas pela análise integrada das fontes de desigualdades estruturantes da sociedade brasileira.

O mês está sendo celebrado com menos flores e mais dados!

Antes, porém, é importante pontuar a diferença entre sexo e gênero. Será que é verdade que homens são mais inteligentes, capazes, racionais, fortes e preferem azul? E que as mulheres são frágeis, maternais, cuidadoras e adoram rosa? Por que esses são os papéis esperados para homens e mulheres na sociedade? Como isso afeta homens e mulheres? Ao fazer essas perguntas, estamos discutindo gênero.

E essa discussão surge justamente para mostrar que a biologia não deve determinar o destino social das pessoas, que nascer mulher não deve significar ser considerada inferior, incapaz ou merecedora de menos direitos. O conceito gênero, portanto, não nega a biologia, ele contesta suas consequências sobre a vida de cada um, sobre a liberdade de decidir seu modo de vida sem ser discriminado ou violentado por suas escolhas.

Sexo é biologia e abarca questões até mais complexas que simplesmente nascer homem ou mulher, uma vez que existem pessoas que nascem com características biológicas híbridas (intersexuais). O gênero, por sua vez, é uma construção social que remete à nossa identidade, a como nos vemos e nos mostramos ao mundo. Por isso, as letras vão se somando em um conjunto ainda em construção de possibilidades de identificação: LGBTQIA+…

O debate recente por uma educação mais inclusiva e respeitosa inclui iniciativas que visam combater as discriminações de gênero, orientar e conscientizar sobre educação sexual, em uma perspectiva de aceitação de identidades diversas daquelas atribuídas ao nascer, além de orientar crianças e adolescentes, de acordo com suas idades, para uma vida sexual segura, focada na prevenção e na identificação de possíveis abusos. Nunca foi sobre mamadeiras exóticas ou “ensinar meninos a serem meninas”.

Entretanto, a própria aceitação da diversidade pela via do conhecimento é uma contestação às hierarquias de poder. Os setores conservadores da “família tradicional” instituíram uma verdadeira guerra contra essas iniciativas, encapsuladas em uma “ideologia de gênero” deturpada, que se configurou em uma das mais perversas fake news dos últimos tempos. Conhecimento é poderoso e revolucionário e, por isso, a educação pública de qualidade (incluindo a sexual) nunca foi pauta prioritária no país. É preciso controlar corpos, anseios e narrativas para manter o status quo e o controle do poder e do dinheiro nas mãos de quem sempre os deteve.

As desigualdades de gênero afetam as vidas cotidianas de homens e mulheres em distintas dimensões, como mercado de trabalho, acesso a recursos, divisão de tarefas domésticas, educação, acesso à serviços de saúde sexual e reprodutiva, garantia de direitos, violências e o exercício de posições de liderança e tomada de decisão. Construir indicadores que deem conta dessa multidimensionalidade é um grande desafio à capacidade estatística dos países e a busca por equidade entre homens e mulheres passa pela superação das desigualdades encontradas em cada uma das dimensões analisadas.

A participação no mercado de trabalho, por exemplo, é um indicador historicamente desfavorável às mulheres. Em 2019, pouco mais da metade delas trabalhava ou estava procurando trabalho e disponível para trabalhar; enquanto a participação dos homens era de 74%. Os papeis de gênero são fundamentais para explicar essa diferença.

Por séculos, principalmente a partir da expansão do capitalismo, as mulheres se mantêm como as principais responsáveis pelos cuidados e afazeres domésticos; pela criação e manutenção de uma força de trabalho alimentada, vestida e saudável. É um insumo de produção valioso que os donos do capital tiveram a perspicácia de reduzir a um custo mínimo porque não remunera quem o produz. Essa exploração só foi possível com o apoio das narrativas de gênero de subordinação da mulher ao homem provedor, capitaneadas pelo patriarcado, clero e Estado. Essa responsabilidade reduz as oportunidades de trabalho das mulheres, principalmente na ausência de suporte institucional como creches e escolas em tempo integral.

Outros indicadores corroboram essa explicação. Mulheres dedicam o dobro de horas que os homens ao trabalho doméstico não remunerado e são as que mais trabalham em tempo parcial. Quando há crianças pequenas em casa, a ocupação das mulheres cai de 67,2% para 54,6% e a dos homens sobe de 83,4% para 89,2%!

Esses indicadores são ainda mais desfavoráveis para mulheres pretas ou pardas. Com o histórico de inserção ocupacional mais precária, muitas em trabalho doméstico remunerado, essas mulheres têm a responsabilidade dupla de cuidar da sua casa e das suas crianças após fazer o mesmo pela casa e crianças de suas patroas (ver artigo “Trabalho Doméstico no Pós-Pandemia” aqui no blog). A sonhada igualdade no mercado de trabalho só será viável discutindo-se a sério uma política de cuidados que vise compartilhar socialmente os custos de cuidar das novas gerações e dos idosos não mais “úteis” ao capital, função hoje ainda sobrecarregando mulheres e limitando suas oportunidades.

Por outro lado, o Brasil já há algum tempo possui uma vantagem no combate às desigualdades de gênero no que se refere à educação. Em muitos países, a educação formal das mulheres não é valorizada e meninas ainda frequentam menos a escola para se dedicar às atividades de cuidados com a casa e à família. Na população brasileira adulta, 15,1% dos homens e 19,4% das mulheres tinham superior completo. Meninas tinham também melhor desempenho escolar, principalmente a partir do ensino médio, no qual o atraso escolar entre os meninos era maior. Mais uma vez, é preciso chamar atenção para as desigualdades que existem dentro do grupo das mulheres quando se considera a perspectiva racial, com as mulheres brancas sempre com indicadores mais favoráveis que o das mulheres pretas ou pardas.

Entretanto, como os indicadores de trabalho mostram, essa maior escolaridade não tem sido suficiente para melhorar a inserção ocupacional das mulheres e fazê-las alçar melhores remunerações e carreiras. O esperado papel de cuidadora condiciona as escolhas das mulheres a todo momento, seja na busca por trabalhos em tempo parcial, na continuidade dos estudos, ou até mesmo na decisão sobre qual carreira seguir. Mulheres representavam apenas 13,3% das matrículas nos cursos presenciais de graduação na área de Computação e TIC e 21,6% na área de Engenharia e profissões correlatas. Já nas áreas relacionadas ao cuidado, a participação feminina era muito maior: 88,3% na área de Bem-Estar. As diferenças salariais entre essas áreas são bem conhecidas e mostram o que a sociedade valoriza enquanto profissão.

Por fim, o estudo traz dados sobre representatividade. A heterogeneidade da população brasileira demanda que tenhamos pessoas com perfis diversos tomando decisões e formulando políticas públicas de forma a abarcar a multiplicidade e as especificidades de questões que afetam mais uns grupos que outros. Embora nem sempre seja uma relação direta, são maiores as chances de mulheres se engajarem em pautas feministas justamente porque vivenciam, ainda que de forma diferenciada, o medo constante de serem violentadas, a sobrecarga dos cuidados, a discriminação, o peso das escolhas condicionadas. As mulheres, porém, estão sub-representadas em todas as esferas decisórias analisadas.

O ranking internacional que mede a participação de mulheres nos parlamentos coloca o Brasil na posição 142 de 190 países, com 15% de assentos na Câmara dos Deputados ocupados por mulheres. Em contraste, temos, por exemplo, países como Ruanda (61,3% de mulheres no parlamento) e Cuba e Bolívia (53%). Nos municípios, a situação é semelhante: 16% de vereadoras eleitas em 2020 (9,8% no Rio de Janeiro). No atual governo, há somente duas ministras de Estado (7,1%) e, em relação aos cargos gerenciais, tanto no setor público quando no privado, apenas 37,4% das mulheres ocupavam posição de liderança.

A metáfora do teto de vidro é uma velha conhecida do feminismo. As mulheres estão, hoje, em média, mais escolarizadas que os homens e conseguem vislumbrar, pelo vidro, o topo das carreiras que querem e podem chegar. Porém, a barreira imposta pelo teto representa todos os obstáculos que os papeis esperados de gênero impõem às mulheres.

É preciso, no entanto, ir além e questionar que as poucas mulheres que estão conseguindo quebrar tetos de vidro são, em geral, brancas e que são as mulheres pretas ou pardas que estão limpando seus cacos. Conforme alerta Vergès (2020), “o trabalho de cuidado e limpeza é indispensável e necessário ao funcionamento do patriarcado e do capitalismo racial e neoliberal, contudo, ele permanece invisível, marcado pelo gênero, racializado, mal pago e subqualificado”.

É viável discutir igualdade de oportunidades nessas condições de exclusão da maioria? Qual o papel do Estado nesse processo de garantia de direitos? Que leis e políticas são necessárias para garantir que, de fato, todas as mulheres possam escolher livremente seus modos de vida?

***

Clique aqui para ler outros artigos de Barbara Cobo.