Meagan Day entrevista a antropóloga Kristen R. Ghodsee, que reflete sobre como o incipiente impulso anticapitalista foi sequestrado para fins reacionários, tornando aceitáveis esposas tradicionais e enfraquecendo a luta por justiça e igualdade.
As revistas femininas, que antes eram repletas de regras arcaicas sobre a submissão da mulher, evoluíram a ponto de se tornarem irreconhecíveis desde a publicação do clássico feminista de Betty Friedan, A Mística Feminina (1963). Agora, as feministas do século XXI observam com horror como as autodenominadas tradwives enchem essas páginas com conselhos sobre o casamento (“Como esposas tradicionais, somos chamadas a honrar e elevar nossos maridos, não a derrubá-los”) e sobre o trabalho (“Não há problema em ter um emprego leve, talvez cuidar de crianças por algumas noites”).
A antropóloga Kristen Ghodsee considera que o fenômeno das tradwives é mais do que uma simples moda nas redes sociais. Essa nostalgia passageira por um regime de gênero romantizado do passado reflete pressões sistêmicas mais amplas, tanto sobre as elites — que enfrentam mudanças econômicas significativas com potencial para gerar descontentamento em massa — quanto sobre as mulheres comuns, que estão ansiosas para escapar da dupla expectativa opressiva do trabalho explorador e do cuidado não remunerado.
Autora de Por Que as Mulheres Têm Sexo Melhor Sob o Socialismo, Utopia no Cotidiano e vários outros livros, Kristen Ghodsee é professora e diretora do departamento de estudos russos e do Leste Europeu da Universidade da Pensilvânia. Com base em sua pesquisa sobre as dimensões de gênero do socialismo do Leste Europeu e a transição para o capitalismo, ela conversou com Meagan Day, da Jacobin, sobre como os papéis tradicionais de gênero foram usados para administrar choques econômicos, os usos sociais da autoridade patriarcal e como a insatisfação real das mulheres com as condições precárias de trabalho — remunerado e não remunerado — acaba sendo desviada da ação coletiva para fantasias individuais de fuga que, no fim das contas, minam sua autonomia.
Meagan Day (MD): Por que o fenômeno das tradwives está acontecendo justamente agora?
Kristen Ghodsee (KG): Venho refletindo sobre isso a partir da perspectiva de uma antropóloga e historiadora da Europa Oriental. Tenho duas observações interligadas. A primeira é que, em Leviatã (1651), de Thomas Hobbes — um texto fundamental da civilização ocidental e uma justificativa para o Estado —, Hobbes argumenta que as pessoas não obedecem naturalmente ao soberano, embora precisem de um. Elas devem ser treinadas para adquirir hábitos de obediência. Ele explica que aprendemos a obedecer primeiro com o paterfamilias — o pai da família, chefe da casa.
Mais especificamente, Hobbes baseou sua teoria no ideal republicano romano de patria potestas, no qual o pai tinha poder absoluto, inclusive sobre a vida e a morte de seus filhos e escravizados. Os papéis tradicionais de gênero dentro da família nuclear preparam as pessoas para aceitar, sem questionar, a liderança de um soberano ou ditador.
Portanto, não é surpreendente que, à medida que testemunhamos uma guinada global rumo a neoditaduras e à política de homens fortes da extrema direita, também estejamos vendo uma ênfase renovada na família nuclear tradicional, liderada por um pai forte e masculino que treina as pessoas para a obediência. O fenômeno das tradwives e a manosphere são duas faces da mesma moeda, refletindo essa inclinação em direção à política autoritária.
Minha segunda observação se refere a choques econômicos. Depois da queda do Muro de Berlim, em 1989, quando a economia da Alemanha Oriental foi desmantelada por meio da privatização e liquidação das empresas estatais, o desemprego chegou a cerca de 40% em 1991. A solução? Enviar as mulheres de volta para casa. As autoridades argumentaram que, como as mulheres são naturalmente donas de casa, fazia sentido reduzir os índices de desemprego retirando-as da força de trabalho.
Em 1991, o ministro das Finanças da Bulgária, Ivan Kostov — que mais tarde se tornaria primeiro-ministro — disse ao Banco Mundial que “o desemprego é uma questão urgente, chegando a 10% este ano. Uma solução poderia ser incentivar as mulheres, das quais 93% estão empregadas, a deixarem o mercado de trabalho e voltarem para suas famílias, mesmo que isso signifique uma perda temporária do poder de compra das famílias.”
Essa estratégia tem sido usada repetidamente. Quando há um choque econômico — seja na introdução do capitalismo em sociedades anteriormente socialistas ou, no momento atual, com a chegada da inteligência artificial (IA) —, em que os governos precisam reduzir rapidamente a força de trabalho sem causar agitação social. Enviar as mulheres de volta para casa é uma das soluções. Existem precedentes históricos disso, inclusive nos Estados Unidos, como quando as mulheres foram incorporadas à força de trabalho durante a Segunda Guerra Mundial e depois pressionadas a voltarem ao lar após o fim do conflito.
Eu não acho que Donald Trump esteja jogando xadrez em quatro dimensões — as pessoas lhe dão crédito demais. Mas figuras como Elon Musk certamente estão refletindo sobre as disrupções que a IA trará ao mercado de trabalho. A IA eliminará muitos empregos em breve. Existe uma necessidade urgente de evitar um alto desemprego que possa gerar caos social. Promover papéis de gênero tradicionais, com esferas separadas de trabalho — o trabalho remunerado e o doméstico não remunerado — tem o “belo” efeito de reduzir a força de trabalho formal justamente quando os empregos estão desaparecendo. É provável que algumas das pessoas poderosas que promovem esses papéis de gênero tradicionais estejam cientes disso.
Mas há uma contradição: essas mesmas pessoas estão criando produtos que reduzem a necessidade de trabalho humano, enquanto dizem, ao mesmo tempo, que precisamos de mais humanos. Em uma entrevista recente à Fox News, quando perguntado sobre o que lhe tirava o sono, Elon Musk respondeu que era a queda nas taxas de natalidade. Essa é sua principal preocupação. Isso faz sentido se você é um oligarca, já que dois terços da economia americana dependem do consumo das famílias. Haverá um problema se não houver pessoas suficientes para comprar seus produtos.
Os papéis de gênero tradicionais têm utilidade prática para enfrentar esses dois problemas: promovem a ideia de que as mulheres devem tanto sair do mercado de trabalho quanto ter mais filhos. Representantes das elites como Musk percebem que reforçar esses papéis tradicionais incentiva as mulheres a aceitarem não trabalhar e a dependerem financeiramente de seus parceiros — o que serve tanto para absorver o choque exógeno que está por vir no sistema, quanto para aumentar a taxa de natalidade, o que ajuda a evitar o colapso do consumo.
MD: Então, a ideia deles seria mandar as mulheres de volta para casa, de forma que a força de trabalho seja reduzida o suficiente para aumentar os salários dos trabalhadores que permanecerem — no caso, os homens — e, assim, ressuscitar a mítica família sustentada por uma única renda?
KG: Sim, em teoria, porque uma força de trabalho menor gera pressão para aumento de salários. Mas há outros efeitos, e é aí que entra a teoria hobbesiana. Se você tem um único patriarca com um salário familiar, isso reforça o modelo tradicional da família nuclear patriarcal, que gera obediência entre mulheres e crianças, as quais dependem do pai para seu sustento material.
Isso cria uma dinâmica familiar patriarcal que treina as pessoas a serem submissas à autoridade arbitrária, suprime a dissidência e enfraquece a autonomia das mulheres, além de dificultar sua capacidade de sair de situações abusivas.
Na verdade, não sabemos com certeza se mandar as mulheres de volta para casa aumentaria os salários dos homens — especialmente diante de um choque tão profundo como o da inteligência artificial. Mas mesmo que aumentasse, os problemas culturais seriam insuportáveis do ponto de vista dos direitos das mulheres.
MD: Estamos falando sobre o que está na mente das elites, mas e as pessoas comuns? Por que mulheres comuns consomem conteúdos sobre tradwives?
KG: Não é bom, divertido ou agradável ser uma trabalhadora nos Estados Unidos. O capitalismo é uma droga. Muitas mulheres no mercado de trabalho não estão tendo uma boa experiência. Elas se sentem atraídas por alternativas, mas como não há nenhuma sendo oferecida, acabam olhando para um passado romantizado.
Esse fenômeno tem uma nova cara agora, mas não é totalmente novo. Lembro que, quando Trump foi eleito em 2016, houve uma pesquisa perguntando às americanas se preferiam ser como Hillary Clinton ou Melania Trump. A imagem de Melania — deitada à beira da piscina, de maiô e com enormes óculos da Gucci — venceu a da política instruída Hillary Clinton.
Isso reflete uma vertente de misoginia na cultura americana que nunca desapareceu de verdade — e que as próprias mulheres acabam internalizando. As meninas crescem ouvindo versões diversas da história da Cinderela – a clássica animação da Disney – até Uma Linda Mulher —, todas falando sobre ser escolhida e salva de uma vida de trabalho brutal e miserável por um homem rico. Essas narrativas são muito poderosas.
As pessoas querem ser valorizadas e, em uma sociedade capitalista, o prestígio está ligado à riqueza — riqueza em dinheiro, mas também em tempo. O conteúdo das tradwives é uma espécie de “pornografia da riqueza”, mas de outro tipo: tudo gira em torno da existência de um marido com alta renda.
MD: Você conhece a tendência do “soft life”? Trata-se de um tipo de conteúdo nas redes sociais, feito principalmente por e para mulheres da Geração Z e Millennials, sobre viver uma “vida suave” — não trabalhar tanto, não se esforçar demais, parar de correr atrás, desacelerar, relaxar. Em geral, são postagens altamente estetizadas sobre tomar suco verde e praticar autocuidado. Não é tão ideológico quanto o conteúdo das tradwives, mas fala da mesma insatisfação com o trabalho. É algo atrativo. Mas a verdade é que viver uma verdadeira “vida suave” sob o capitalismo exige um marido rico ou pais ricos. Não é possível levar esse estilo de vida o tempo todo sem abrir mão de uma independência e autonomia que foram conquistadas com muito esforço. Diante das pressões do trabalho em geral — sem falar do desafio de conciliar carreira e responsabilidades familiares —, algumas mulheres estão genuinamente se perguntando se essa troca valeria a pena.
KG: É triste, porque há aqui um impulso anticapitalista embrionário que está sendo desviado para fins reacionários. O sentimento de olhar para as relações de classe exploradoras do capitalismo e pensar “não quero mais participar disso” poderia se transformar em organização coletiva — mas, em vez disso, vira fantasias individuais de fuga. O caminho das tradwives parece mais fácil e socialmente aceitável do que entrar para uma organização política e lutar por justiça.
A verdade é que a esquerda tem, sim, boas respostas para as questões que as mulheres enfrentam, como equilibrar trabalho e vida familiar, ou até mesmo decidir ter filhos, caso esse seja o desejo delas. Já a direita, ao contrário, não tem boas respostas.
Há essa visão misógina de que o feminismo tornou as mulheres egoístas, de que elas não estão fazendo o que “naturalmente deveriam fazer” — ter filhos —, e estão se tornando “solteironas com gatos”. Mas as mulheres são seres racionais, que olham para o mercado de trabalho, os custos de criar filhos, a ausência de apoio do Estado, e todos os sacrifícios que teriam que fazer e algumas optam por não ter filhos.
Na Alemanha Oriental e na Bulgária, sob o socialismo, o Estado subsidiava a educação infantil. Havia abonos por criança, licenças parentais remuneradas com proteção ao emprego e outras políticas pró-família. Era um sistema que permitia às mulheres trabalhar e ter filhos, se assim quisessem — e a maioria queria fazer as duas coisas. Mais importante ainda: quando foram ouvidas em pesquisas, a maioria dizia que queria fazer ambas as coisas.
Quando as empresas foram privatizadas com a introdução do capitalismo, esses recursos desapareceram. As autoridades tentaram empurrar as mulheres de volta para casa, pensando: “Em vez de o Estado pagar por esses serviços, as mulheres farão isso de graça, porque é o que se espera delas”. Eles realmente acreditavam — assim como a direita americana acredita hoje — que a maioria das mulheres seria mais feliz em casa com os filhos, fazendo ioga, assistindo novelas, preparando fermentação natural ou ordenhando vacas. Pensavam: “Vamos mandar as mulheres de volta pra casa pra fazer o trabalho que antes a gente pagava, elas terão mais filhos e todos ficarão mais felizes”.
Mas as evidências contradizem essa ideia. De acordo com as Nações Unidas, a Bulgária é o país que mais encolhe no mundo, por conta da emigração e das taxas de natalidade extremamente baixas — e isso vem acontecendo desde a introdução do capitalismo. Vemos padrões semelhantes na Coreia do Sul e no Japão.
Uma vez que as mulheres conquistam independência econômica e podem tomar decisões sobre suas vidas, ter um filho passa a significar perder essa autonomia — a menos que haja um forte apoio do Estado. As evidências históricas mostram que empurrar as mulheres de volta para casa sem esses investimentos tende a reduzir as taxas de natalidade, e não aumentá-las.
MD: As ideias da direita podem não ser funcionais, mas ainda assim são atraentes para pessoas desesperadas por imaginar uma alternativa à situação insustentável do presente. Como podemos convencer as mulheres que buscam uma saída para as pressões do trabalho sob o capitalismo a olharem para um futuro progressista em vez de um passado reacionário?
KG: Há um ensaio belíssimo de Nadezhda Krupskaya, escrito por volta de 1899, chamado “A Trabalhadora”, que discute o que fazer com as camponesas russas que, em sua maioria, eram analfabetas e politicamente alheias. Ela argumenta que as mulheres só se politizam participando de eventos políticos — é preciso reunir as pessoas, e quando uma mulher sente a força de suas companheiras, ela de repente entende o próprio poder. Quanto mais ela participa, mais radicalizada se torna.
As feministas liberais são míopes ao acharem que é possível convencer alguém apenas com argumentos de que o mundo pode ser diferente. Precisamos entender que, depois das necessidades básicas — como água, moradia, comida, saúde e educação —, o que as pessoas mais precisam é estima. Elas precisam se sentir parte de uma comunidade que as ame, admire e valorize. A experiência de pertencer a essa comunidade pode transformar a consciência de alguém com muita rapidez. É o antídoto para o isolamento das redes sociais e para cair no buraco da tradwife.
Isso precisa começar no território, organizando encontros em que as pessoas possam conversar e se conhecer, ou mesmo apenas sair para tomar algo e falar sobre política e sobre a vida. Temos que ser criativas. A ideia é criar um espaço no qual as mulheres possam conectar suas lutas pessoais ao sistema mais amplo. Porque, se não fizermos isso, a direita vai continuar explorando a insatisfação das mulheres para promover sua agenda — como já estamos vendo acontecer. (Publicado por Ctxt do original no Jacobin)
Tradução para o espanhol: Pedro Perucca.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli
Leia também “Era uma vez no Ocidente”, de Luiz Marques.