A violência que perdura contra as mulheres

Flora Tristan nasceu na França em 1803. Filha de um casamento clandestino entre um aristocrata militar peruano e mãe francesa, ficou órfã ainda criança e teve seus direitos legais à herança paterna, negados. Aos 17 anos, em grandes dificuldades financeiras, foi obrigada a casar-se com seu então patrão, que se revelou um marido extremamente violento. Fugiu de casa grávida e com dois filhos pequenos, passando por diversos locais na Europa até viajar sozinha ao Peru em 1834, atrás de seus direitos. Sua luta pelo divórcio durou 14 anos, tempo no qual foi perseguida e agredida pelo seu marido até ele ser preso ao tentar assassiná-la.

Durante esse tempo, ela escreveu livros, panfletos e ensaios sobre a condição subalterna da mulher na sociedade [1]. Seu contato com a realidade peruana de profundas desigualdades sociais serviu de insumo para que o tema das condições precárias de vida dos trabalhadores ganhasse força em seus escritos a partir de seu retorno à Europa, em 1840, em particular no livro “Passeios em Londres”, publicado no mesmo ano.

Em 1843, publicou “União Operária”, livro que não só denunciava a vida miserável e oprimida das mulheres operárias, mas também propunha a união de toda a classe trabalhadora em uma organização internacional. Essa proposta antecedeu em cinco anos o “Manifesto Comunista” de Marx e Engels, no qual Flora não foi citada. De forma análoga, o famoso livro “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra” de Engels, lançado cinco anos após “Passeios em Londres”, também não a cita. Flora morreu em 1844, vítima do tifo e da fadiga durante as viagens de divulgação de seu último livro.

Uma das precursoras nos estudos de organização do movimento sindical europeu e das relações interseccionais de gênero e classe, Flora era uma mulher lida como branca, que sofreu apagamento de sua história e trabalho por anos, violência doméstica e estrutural. Assim como ela, muitas outras mulheres poderiam ter sido as protagonistas dessa introdução. Mulheres que ao longo dos séculos percorreram essa mesma trajetória de apagamentos e violências forjada e reforçada por uma sociedade construída por homens brancos para homens brancos. Em particular, mulheres negras, indígenas e periféricas, cujos caminhos foram ainda mais tortuosos em função da combinação das opressões de gênero, classe e lugar de residência no mundo. Todas vítimas de uma sociedade patriarcal que encontrou no capitalismo e na Igreja a força (e os argumentos) para subjugar mulheres a um papel social secundário e condenar à morte aquelas que ousavam desafiar esse sistema que dizia sermos “menos” porque nos foi atribuído ao nascer um sexo feminino. História que, infelizmente, ainda remete ao nosso presente.

Em pleno século XXI, as mulheres continuam enfrentando questões similares na luta pelo reconhecimento de seus direitos e condições de igualdade em relação aos homens. Houve avanços, claro. A maior parte das mulheres hoje vota, trabalha, estuda, viaja e escolhe seus parceiros. Contudo, muitas amarras desse histórico de opressões ainda condicionam nossa plena existência e liberdade de viver conforme nossas escolhas. Ainda estamos presas à sobrecarga de trabalho doméstico não remunerado, às discriminações para alçar postos e cargos mais elevados no trabalho e as mulheres (brancas) que conseguiram quebrar “tetos de vidro”, o fizeram às custas de uma legião de mulheres negras e periféricas pagas para limpar os cacos espalhados pelo chão [2].

O aprofundamento do capitalismo traz novos nomes e roupagens para velhas violações. Há nomes mais pomposos para definir distintas formas de apagamentos, como bropriating (quando o homem se apropria e leva os créditos pelas ideias de uma mulher); mainsplaining (quando um homem explica algo que é óbvio para a mulher que entende mais do tema que ele); manterrupting (quando o homem sistematicamente interrompe uma mulher sem deixar que ela conclua seu raciocínio); e gaslighting (quando o homem deturpa e deslegitima sentimentos e falas da mulher, frequentemente, taxando-a de louca).

Seria ingenuidade demais pensar que depois de centenas de anos de reforço do papel da mulher enquanto objeto de posse e uso dos homens, de controle de corpos e narrativas, de manutenção do poder patriarcal, tantas mudanças se dariam sem aprofundamento da violência contra as mulheres.

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) lançou recentemente a 4ª edição da pesquisa “Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil”, mostrando que uma em cada três mulheres de 16 anos ou mais já sofreu alguma forma de violência física ou sexual por parte de parceiro ou ex-parceiro íntimo ao longo de suas vidas. Em relação a 2022, todas as formas de violência contra mulher – física, psicológica e sexual – sofreram aumento, sendo que 51 mil mulheres sofreram violência diariamente e em dois de cada três casos o agressor tinha relacionamento íntimo ou familiar com a vítima. A maior parte das vítimas era negra (65,6%) e jovem (30,3% entre 16 e 24 anos e 22,8% entre 25 e 34 anos) e mais da metade das violências foi sofrida dentro de casa. Resultados que confirmam outras fontes mais tradicionais de dados, como DATASUS, registros policiais e Pesquisa Nacional de Saúde (IBGE).

Para além das violências mais visíveis, como agressões físicas e sexuais, é importante atentar para as violências psicológicas (ofensas e assédios de toda ordem) e velhas formas de violência agora nomeadas e previstas em lei, como a violência institucional. A Lei 14.245/2021 trata do abuso da autoridade em submeter a vítima a procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos que a leve a reviver, sem estrita necessidade, a situação de violência. Essa lei ficou conhecida como Lei Mariana Ferrer em homenagem a uma vítima, cujo abuso sofrido durante audiência ficou nacionalmente conhecido. Assim como a lei Maria da Penha (Lei n.11.340/2006), precisou mais uma mulher passar publicamente por toda uma cadeia de violências para que medidas mais efetivas pudessem ser tomadas.

Vale lembrar que o feminicídio é, em geral, a ponta fatal de um iceberg de agressões escalonadas contra uma mulher que a sociedade e suas instituições falharam em proteger. Ter tornado o feminicídio um crime hediondo com qualificação criminal própria (Lei 13.104/15) foi importante, mas é preciso agir de forma preventiva. Mulheres ainda enfrentam uma via crucis para denunciar seus agressores, sendo deslegitimadas e reviolentadas ao longo de todo processo que, em geral, é conduzido por homens. Nenhuma lei que criminalize violência ou misoginia funcionará sem a devida capacitação para o acolhimento das vítimas e corretos protocolos de denúncia, investigação e proteção das vítimas.

O avanço das forças ultraliberais conservadoras evidenciou, por sua vez, a violência política de gênero. As mulheres ocupam hoje cerca de 15% dos cargos eletivos nas três esferas de governo e essas que almejaram se eleger vêm crescentemente enfrentando toda sorte de ameaças, intimidações psicológicas, humilhações e ofensas. No limite, a interrupção de vidas e trajetórias, lembrando que em 2023 fará cinco anos do assassinato da vereadora carioca Marielle Franco, até hoje sem solução.

Mas a representatividade em si não basta. Jamais esquecer que tivemos uma figura como Damares Alves, atualmente senadora, como ministra da “Mulher, da Família e dos Direitos Humanos” em um período que ficará marcado pelo brutal recrudescimento às políticas públicas voltadas para as mulheres. Gênero foi eleita uma das bandeiras ideológicas do governo e, como tal, sofreu diversos ataques e boicotes, cujos impactos ainda estamos observando. A epidemia de violência contra mulheres, apontada pela pesquisa do FBSP é um deles.

A recente eleição de Lula traz um momento de respiro e de renovação de esperanças. A nova composição ministerial veio recheada de mulheres em setores estratégicos para as mulheres, que, além de ministério específico, vão comandar Planejamento, Gestão e Inovação, Saúde, Ciência e Tecnologia, Igualdade Racial, Povos Indígenas, IPEA, bancos federais, entre outros. Que as novas representantes, muitas com reconhecido comprometimento com pautas feministas históricas, possam efetivamente imprimir às políticas públicas a necessária sensibilidade para as questões de gênero e suas interseccionalidades. Não existe o ser universal mulher. Somos muitas e diversas, com distintas orientações, prioridades, perspectivas, crenças e heranças. Por isso, o feminismo é mais bem contemplado se usado no plural. Cabe à política pública laica ser um grande guarda-chuva que abarque toda a complexidade e diversidade dos feminismos atuais.

É nesse cenário que nos aproximamos de mais um 8 de março. A própria ideia de ter um dia no ano dedicado às mulheres, ainda sem uma data fixa, foi proposta durante a 2ª Conferência Internacional das Mulheres Socialistas, em 1910, para ser um dia de manifestações pelo direito de voto, igualdade entre os sexos e pelo socialismo. Foi somente em 23 de fevereiro de 1917 (08/03 pelo calendário gregoriano) que as mulheres de Petrogrado (atual São Petersburgo, na Rússia) foram às ruas protestar contra a grave crise imposta pela 1ª Guerra Mundial (Arruzza, 2019), em um movimento que não só precipitou a Revolução Russa de 1917, como marcou esse dia como “Dia Internacional da Mulher”. Com um histórico desses, não é de se admirar que o capitalismo rapidamente tenha cooptado a data para fins comerciais com odes à feminilidade da mulher para vender eletrodomésticos.

bell hooks, em seu livro “O Feminismo é para Todos” (2015), defende o feminismo como “um movimento para acabar com sexismo, exploração sexista e opressão”, enfatizando que não é ser “anti-homem”, como, muitas vezes, as forças conservadoras propagam. É reconhecer que o preconceito ou discriminação baseados no gênero ou sexo é um problema e que isso requer, inclusive, reconhecer o papel das mulheres na manutenção e perpetuação do patriarcado, afinal, somos todas socializadas dentro dessa mesma estrutura. Então, mais que flores, chocolates e posts de “mulher guerreira”, precisamos de aliados para uma luta que é de todos, todas e todes.

Referências:

  1. Da necessidade de acolher mulheres estrangeiras (1835); Petição para a Reintegração do Divórcio (1837); Peregrinações de uma Pária (1838)
  2. https://terapiapolitica.com.br/mulheres-e-o-intransponivel-teto-de-vidro/ e https://terapiapolitica.com.br/o-trabalho-domestico-no-pos-pandemia/
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone 

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