A pandemia no novo coronavírus reforçou diversas questões sociais brasileiras de longa data. Desigualdade, pobreza, racismo, sexismo e privilégios de toda sorte estão em pauta nas manchetes e editoriais de jornais e portais de grande circulação fomentando o debate. Mas, o mais importante: acadêmicos, ativistas sociais, organizações da sociedade civil e veículos de mídia alternativa dão voz, por meio de seus canais nas redes sociais, às vítimas primeiras de todas essas desigualdades, que passam a falar sobre suas opressões a um público maior e em primeira pessoa. Sim, o “lugar de fala” nunca fez tanta diferença e o “lugar de escuta” é agora uma prioridade para avançarmos enquanto sociedade. “Novos” olhares e perspectivas sobre fatos e eventos políticos e sociais cotidianos se misturam ao discurso da mídia hegemônica e trazem uma riqueza incrível a quem tiver interesse de incorporá-la na sua observação da realidade.

Atravessamos hoje mais uma crise entre muitas que o capitalismo já passou e irá passar. É um sistema que traz a crise em sua essência porque depende da exploração crescente e exacerbada de pessoas e planeta. Quando um dos elos dessa cadeia de exploração arrebenta, o que se tem feito até aqui é remendar para seguir adiante na mesma direção. Considerando que o foco principal das constantes crises não está na dimensão mais aparente das relações sociais, mas em suas estruturas fundantes, até quando remendar será possível?

Uma dessas estruturas concerne à chamada esfera da reprodução social que é o conjunto de atividades que “não apenas cria e mantém a vida no sentido biológico, [mas que] também cria e mantém nossa capacidade de trabalhar – ou o que Marx chamou de força de trabalho” (Fraser et al, 2019). Essa esfera, também denominada “produção de pessoas” pelas autoras do trecho citado, em contraponto à produção dita econômica, é fundamental para a geração de lucro e riqueza uma vez que todos precisam estar alimentados, vestidos, educados e saudáveis para estarem aptos ao trabalho. A “produção de pessoas” se torna uma pauta feminista à medida que o sistema capitalista patriarcal historicamente a relega às mulheres, conferindo pouco ou nenhum valor econômico a esse trabalho. Afinal, o que seriam das suas instituições oficiais (trabalho assalariado, produção, troca e sistema financeiro) sem esse trabalho essencial realizado, em geral, de forma não remunerada, invisibilizada e desvalorizada pelas mulheres?

O distanciamento social imposto como medida de contenção do SARS-CoV-2 amplificou a divisão sexual das atividades domésticas ao fazer com que muitas famílias de classes média e alta tivessem que encarar a difícil conciliação dessas atividades e o trabalho em home office. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (2019) mostram que, no Brasil, 92,1% das mulheres e 78,6% dos homens declararam realizar algum afazer doméstico na semana de referência, percentual que se eleva entre as mulheres pretas (94,1%). A intensidade dessa realização é, todavia, muito diferenciada. Afazeres e cuidados que demandam mais tempo e dedicação são majoritariamente exercidos pelas mulheres, mesmo quando homens e mulheres estão ocupados no mercado de trabalho.

Atividades relacionadas à alimentação (preparar, servir, lavar louça) são realizadas por 95,5% das mulheres, contra 62,0% dos homens. Limpeza e manutenção de roupas e calçados por 91,2% das mulheres e pouco mais da metade dos homens, lembrando que 1/3 das casas não possui máquina de lavar roupa. Limpar e arrumar a casa, quintal ou jardim, por sua vez, são atividades realizadas por 83,4% das mulheres e 69,7% dos homens. A única atividade que os homens realizam mais que as mulheres é a de pequenos reparos na casa, eletrodomésticos ou carro e a divisão se mostra mais equilibrada em tarefas como pagar contas, fazer compras e cuidar de animais domésticos.

Mais impressionante é ver que essa desigualdade ainda é reproduzida nas novas gerações: enquanto 84,8% das filhas realizavam afazeres domésticos, apenas 66,5% dos filhos os faziam. No que se refere aos cuidados dispensados aos moradores ou parentes de moradores, a lógica permanece e mulheres exercem mais atividades intensivas como auxiliar nos cuidados pessoais (85,6% das mulheres e 67,9% dos homens) e nas atividades escolares (71,2% e 60,1%, respectivamente).

Ouvir “mas nem todo homem” ou o exemplo do amigo que “ajuda muito em casa” é comum ao tratar esse tema. Os dados, porém, mostram que estamos longe de poder generalizar e que a exceção não pode ser a régua. “Produzir pessoas” é caro e não valorizar esse trabalho faz parte da lógica capitalista perversa de baratear ao máximo os custos de produção para aumentar os lucros. Em face as políticas neoliberais que reduziram nos últimos anos direitos sociais e a oferta de serviços públicos nas áreas de saúde, educação e assistência social que conferiam algum suporte às atividades reprodutivas, até quando isso será sustentável?

Como resultado, a carga horária média das mulheres entre afazeres e cuidados é superior a dos homens em 10 horas semanais (21,4 horas para elas e 11 para eles). Somadas as cargas de trabalho produtivo e reprodutivo, as mulheres brasileiras trabalham mais que os homens semanalmente, boa parte dessas horas de graça para a sociedade ou remuneradas a um custo muito baixo. Para além da valorização em si, essa carga desigual de trabalho doméstico não remunerado impacta diretamente na inserção mais qualificada das mulheres no mercado de trabalho, já que precisam conciliar ambas as jornadas.

Comparando apenas homens e mulheres que estão ocupados no mercado de trabalho a diferença cai para oito horas, em geral porque tais atividades são terceirizadas a outras mulheres, em sua maioria negras, que precisam dar conta de suas próprias cargas de tarefas domésticas para além da longa jornada diária mal-remunerada na casa dos patrões. De fato, os dados comprovam que o trabalho doméstico no Brasil é feminino, negro e precário. Dos 6,1 milhões de trabalhadores domésticos no país, 93% eram mulheres, 60% pretas ou pardas, apenas 28% tinham carteira de trabalho assinada e o rendimento médio mensal foi o menor entre todas as atividades econômicas (R$ 920,00).

As classes mais favorecidas participam das engrenagens de reprodução de desigualdades em várias formas, entre elas, ao terceirizar suas atividades de reprodução social às empregadas domésticas. Estas, por sua vez, ainda precisam lidar com o medo constante de ter companheiros e filhos vítimas da violência, seja policial ou não, pois a cada 100 pessoas assassinadas no país, 75 são negras. É um passo importante reconhecer como o “ser branco” se beneficia desse sistema e, isso, inclui mulheres brancas privilegiadas. Não basta ser feminista, é preciso ser também antirracista, ambientalista, a favor de direitos trabalhistas para todos e de políticas públicas sociais que apoiam atividades produtivas e reprodutivas.

Os recentes acontecimentos envolvendo a explosão social do movimento Black Lives Matter nos EUA como resposta à violência policial histórica contra negros afroamericanos e o caso da morte do menino Miguel no Brasil – filho de empregada doméstica negra que acompanhava a mãe no trabalho em meio à pandemia e negligenciado pela patroa enquanto a mãe passeava com seus cachorros – devem ser momentos de muita reflexão social. Em especial, para as pessoas racializadas enquanto brancas e beneficiadas direta ou indiretamente por um sistema político e econômico reconhecidamente racista em todas as dimensões possíveis.

Ângela Davis, em seu clássico Mulheres, Raça e Classe (1981), já mostrava que 25 anos após a “libertação” dos escravos poucas mulheres negras conseguiram trabalhar fora do campo, da cozinha ou da lavanderia, atividades por elas exercidas enquanto escravas. Dados dos censos americanos de 1940 e 1960 mostram que a situação pouco se alterou nas décadas seguintes. Com a inserção mais intensa das mulheres brancas no mercado de trabalho a partir dos anos 70 e a consequente mercantilização dos trabalhos domésticos, o setor de “serviços” incorporou essas atividades mantendo elevado grau de precarização e, hoje, emprega quase 1/3 das mulheres negras e latinas nos EUA (US Bureau of Labor Statistics).

De forma similar, Lélia Gonzalez, pioneira nos estudos da interseccionalidade classe, gênero e raça no Brasil, afirmava, já em 1979, que foi a mulher negra que possibilitou a emancipação econômica e cultural da ‘patroa’ com o sistema de dupla jornada de trabalho. Ainda segundo a autora: “o que se opera no Brasil não é apenas uma discriminação efetiva; em termos de representações mentais sociais que se reforçam e se reproduzem de diferentes maneiras, o que se observa é um racismo cultural que leva, tanto algozes como vítimas, a considerarem natural o fato de a mulher em geral e a negra em particular desempenharem papéis sociais desvalorizados em termos de população economicamente ativa”.

Nesse contexto, cabe a reflexão sobre o mundo que queremos pós-pandemia. É preciso repensar a importância e a valorização do trabalho reprodutivo e isso não se fará sem um olhar mais atento à racialização e precarização do trabalho doméstico remunerado. Mais uma vez em linha com os argumentos de Fraser et al (2019), mulheres brancas conscientes de suas opressões sexistas, porém reconhecedoras de seus privilégios sociais e raciais, não deveriam ter interesse em quebrar o telhado de vidro se ainda cabe a uma ampla maioria de mulheres negras, indígenas e imigrantes limparem os cacos espalhados nesse caminho.