Na ultradireita, “há uma apologia à destruição, em forçar ao máximo um momento distópico para justificar a desumanização do outro, a violência política”. A frase é do entrevistado Ariel Goldstein. Não existe cordão sanitário para a extrema direita na América Latina
Entrevista com Ariel Goldstein, doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Buenos Aires (UBA), autor de “La reconquista autoritaria. Cómo la derecha global amenaza la democracia en América Latina”.
O senhor encontra paralelos entre a ultradireita que descreve em suas obras e o fascismo do século passado?
O fascismo tradicional era a mobilização em torno do líder e nas ruas, com camisas marrons e a saudação nazista, tudo ao mesmo tempo. O pós-fascismo, como Enzo Traverso o chama, embora inclua um pouco disso, não usa tanto a violência física quanto a violência simbólica. Por isso, as redes sociais são tão importantes.
O objetivo principal é a aniquilação simbólica do inimigo. Isso não quer dizer que não haja violência em alguns momentos, como o ataque aos três poderes em Brasília e ao Capitólio nos Estados Unidos, mas não é o dominante, são momentos específicos de uma batalha cultural, que é simbólica.
Quem são os que engrossam as fileiras destes movimentos?
Em geral, são figuras que estavam esquecidas e que agora recuperaram uma nova vida. No caso de Javier Milei, na Argentina, por exemplo, é gente que se não fosse por isso, não teria chegado a nada. Existem alguns personagens mais ideológicos, de extrema direita, e também há muitos oportunistas que se adaptam por conveniência. Bolsonaro chegou ao poder como influencer, distribuindo listas no WhatsApp. É assim que chegam pessoas sem trajetória política que pegam a onda.
Por que precisam apelar a essas figuras secundárias?
Por causa da forma como surgem. Essas figuras outsiders nascem geralmente das redes sociais, onde encontram uma forma de comunicação direta que não tinham. Antes, os meios de comunicação tradicionais definiam quais discursos eram aceitáveis e quais não, e hoje essa barreira não existe mais.
Além disso, possuem algo de provocativo que nasce das ideias de Steve Bannon, das quais esta direita se apropria. Muito do que Milei chama de batalha cultural retira de Bannon. Cria-se, então, uma ideia de escândalo que é muito atraente para os meios de comunicação. Esses personagens aumentam a audiência na televisão e geram retuítes nas redes.
Esta é a forma como surgem estes líderes. Portanto, não possuem um partido e precisam buscar alianças diferentes das dos partidos tradicionais. E quem está disposto a se somar a isso? Políticos caídos em desgraça ou gente que não vem da política tradicional. Esses influencers e youtubers são especialmente funcionais nessa direção.
Qual é o papel desses influencers?
Acompanham e reproduzem essa narrativa. Chegam a públicos diferentes aos do líder, pressionam pela radicalização do movimento e, dessa maneira, ganham adeptos e dinheiro por visualizações.
Como lidam, então, com tensão entre a provocação nas redes e a gestão do governo, quando chegam ao poder?
Existe um estilo diferente de governo, onde a gestão não importa mais. É uma narrativa polarizadora que busca destruir um inimigo, as cucas, os parasitas, a casta. Não é que não haja gestão, mas é mais importante a narrativa construída via redes sociais que circula em torno da megalomania e o messianismo do líder.
Quando se analisa o Instagram de Milei, é o leão contra os ratos. Isso não tem nada a ver com a gestão, o adversário é um rato e está desumanizado. A violência é uma forma de construção política e quando você diz que o outro é um rato, está habilitando formas de violência política.
Em seu último livro, fala sobre “a família global” da direita. Como surge esse conceito?
É uma ideia de Steven Forti, que eu aprofundo. Nesta época da conectividade global, as extremas direitas estão utilizando esses mecanismos de comunicação para fortalecer os seus laços e construir narrativas comuns. Por exemplo, pátria e família, que foi a campanha de [Giorgia] Meloni, na Itália, e de Bolsonaro, no Brasil, e o que diz [Eduardo] Verástegui, no México. É como um núcleo unificador: busca-se falar uma linguagem comum que se repete em encontros que antes não existiam.
Não existiam ou não tinham publicidade?
Nos anos 1970, a extrema direita se reunia secretamente e de forma ilegal, como quando coordenavam operações de repressão ilegais. Penso, por exemplo, na Operação Condor [plano de extermínio de opositores coordenado pelas ditaduras do Cone Sul-Americano]. Hoje, é uma internacional neofascista escancarada.
Não há ocultação, muito pelo contrário: busca-se convocar todos os que desejam se somar. Como a Conferência Política da Ação Conservadora – CPAC, uma vitrine de ultraconservadores que nasce nos Estados Unidos, exerce pressão dentro do Partido Republicano e hoje está no Japão, em Israel, no México e no Brasil. E depois tem o Vox, que é uma perna justaposta e com personagens que se cruzam.
Qual é o papel do Vox em tudo isso?
O Vox tem uma série de ideias que convergem com a CPAC, mas não são as mesmas: reconquista, hispanidade, narcomunismo. Esta coisa da Espanha católica que tem que voltar a ser uma influência sobre as ex-colônias. A proposta do Vox é inteligente ao propor um vínculo Europa-América Latina a partir das colônias, da tradição católica castelhana e da língua.
O Vox também permitiu que personagens marginais, como era Milei na Argentina, se somem a uma série de redes e contatos que não tinham. Milei, em um de seus atos, agradece a Santiago Abascal por lhe abrir as portas quando, diz, ‘eu era um ser desprezado’.
Por que esses movimentos se sustentam na sociedade?
Nessa nova etapa do neoliberalismo, as frustrações geradas pelo sistema, como a desigualdade e a precarização, são conduzidas por estes líderes emergentes contra a própria democracia liberal. É uma forma de construção de poder que tem a ver com esta etapa do capitalismo.
Esses líderes fazem um discurso da destruição: Bolsonaro foi à embaixada do Brasil, nos Estados Unidos, e disse que para construir, antes era preciso destruir muitas coisas em seu país, como o socialismo; Milei disse: “eu sou uma toupeira do Estado para destruí-lo por dentro”; Elon Musk, quando ocorreram os últimos protestos na Inglaterra, disse que “a guerra civil é inevitável”. Há uma apologia à destruição, em forçar ao máximo um momento distópico para justificar a desumanização do outro, a violência política.
No Brasil, Lula retornou, nos Estados Unidos, Trump não parece mais ter a vitória garantida e a França deteve a ultradireita. Está surgindo um dique de contenção?
Não sei, porque é algo que está em processo. Vemos que o que antes era uma direita tradicional e moderada, como o PRO, na Argentina, e o PSDB, no Brasil, deu lugar a esta direita radical que questiona abertamente vários princípios democráticos. Isto leva a uma deterioração da convivência democrática e a um declínio na crença de que a democracia é o melhor sistema.
Não esqueçamos que na América Latina as democracias são jovens, têm menos de 40 anos. Não é inimaginável que surjam essas ultradireitas herdeiras do autoritarismo. Essas tradições, como vemos agora, nunca desapareceram totalmente na América Latina e as elites econômicas e políticas estão habituadas a resolver os problemas dessa forma. É a história latino-americana.
Pode surgir um “cordão sanitário” na América Latina, como o que houve na França contra Le Pen?
Não, isso não existe e já vimos. Nesse ponto, o perigo na região é maior. Na Europa, a União Europeia foi construída com grande consciência do que foram o fascismo e a guerra. Deste lado, não existe isso, nem mesmo nos Estados Unidos. Trump incitou um ataque ao Capitólio e o sistema democrático estadunidense não conseguiu forjar anticorpos para impedir que voltasse a ser candidato. Ao contrário do Brasil, que, sim, inabilitou Bolsonaro por oito anos.
Vê alguma figura emergente que possa se juntar a Milei, Bolsonaro e Trump?
É necessário prestar atenção em Eduardo Verástegui, no México. Não estou dizendo que possa chegar a presidente, mas na medida em que agora serão seis anos com Claudia Sheinbaum e 12 anos do Morena, é provável que a direita se fortaleça. Há uma busca em construir um movimento lá e o vincular a essas direitas radicais globais. É um personagem bem conectado a esse mundo, com Vox, com Milei e com Trump. Só por isso já vale a pena prestar atenção.
E o que o senhor pensa de José Antonio Kast, no Chile?
Ele também é um personagem importante, mas parece que hoje, com o surgimento de Evelyn Matthei, ainda existe uma direita tradicional com poder. De qualquer forma, o fato de Kast ter chegado ao segundo turno, nas últimas eleições, já é interessante. No início do século, a direita chilena havia se tornado moderada e se declarava não pinochetista para ganhar votos. Kast é totalmente o oposto, pensa que a direita falha porque não é condizente com os valores mais autoritários e religiosos.
Conversamos sobre a diferença entre esta ultradireita e o fascismo. E com a direita tradicional?
Para começar, o vínculo com as ditaduras. A ultradireita reivindica um terrorismo de Estado que não existia. Temos também o apelo à violência, o esforço em construir uma narrativa a partir das redes, a desumanização do outro. O coquetel da direita tradicional era outro e até coexistia com figuras mais progressistas.
A ultradireita ataca ‘os esquerdistas’, o feminismo, a agenda 2030. A direita tradicional ainda estava imbuída do espírito pós-queda do Muro, no sentido de que a Guerra Fria acabou e que a democracia pode ser estendida ao mundo todo.
Milei, Bolsonaro e Kast vêm reavivar a linguagem da Guerra Fria, só que o contexto é diferente. Cuba não é uma ameaça, a União Soviética não existe, então, o inimigo agora é interno, sem uma ameaça real do comunismo. Eu chamo isso de neomacarthismo.
Então, como essa ideia de guerra ao comunismo cola?
Porque na pós-verdade a narrativa é mais importante do que a verdade. É uma construção narrativa muito forte, sem conexão com a realidade.
Qual é o papel da religião em tudo isso?
Todos esses personagens fazem uma hibridização religiosa. Combinam os elementos mais conservadores das religiões ocidentais e, ao mesmo tempo, podem assumir outras formas. Bolsonaro é um bom exemplo: é católico, foi batizado por um pastor evangélico e se reúne com os judeus mais ortodoxos, vai a Israel e visita [Benjamin] Netanyahu. Fazem sempre uma hibridização a partir do mais conservador, e isso lhes serve para uma narrativa messiânica, onde Deus lhes pediu para salvar o país.
A gestão não os obriga a moderar o discurso? Penso em Milei pedindo dinheiro à China e à Arábia Saudita, países que ele sempre insultou.
Existe uma moral dupla. Por um lado, Milei se coloca como um intransigente, mas depois, por baixo, negocia. Bolsonaro fazia o mesmo. Dizia: ‘mais Brasil, menos Brasília’, mas tinha sido deputado em Brasília por 28 anos. Se for necessário negociar, negocia-se, mas que as pessoas não percebam, mesmo que na narrativa digam que os comunistas são abomináveis.
Que papel o senhor vê para a esquerda e o progressismo neste cenário?
Está paralisada, sem conseguir interpretar o fenômeno da extrema direita. Por isso, não sabe como combatê-la. No Brasil, conseguiu, mas apelando a Lula, que é um líder único. E lembremos que Bolsonaro perdeu por apenas um milhão de votos e poderia perfeitamente ter vencido. Ficou demonstrado que a ultradireita não é invencível, mas é necessário haver alianças muito grandes entre todos os que pensam que é uma ameaça à democracia. (Publicada por IHU/Unisinos, em 29/08/2024)
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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