Imaginar nascimentos, no plural, pode ser útil para se conhecer como foi mesmo a história de cada um.
É comum falar que a gente só nasce uma vez e que o nascimento tem dia, mês e ano. Por outro lado, há na história pessoal o desenrolar de uma novela na qual ocorrem mais de um nascimento. E foi isso que ocorreu ao menino Boris Cyrulnik quando tinha seis anos, pois numa madrugada entraram na casa onde vivia com lanterna e revólver. Eram policiais nazistas do sul da França no distante ano de 1944; ele foi levado à Delegacia. A senhora Farges o salvou ao dizer em sussurro que não se devia dizer que era judeu, e logo aprendeu seu novo nome. O terceiro nascimento ocorreu quando Boris estudava, pois se formaram grupos que entravam em disputa, e ele subia em árvores altas para espiar os adversários. Percebeu o quanto era rápido para subir e descer de árvores altíssimas, e logo imaginou descer rápido se pudesse descer se agarrando de galho em galho como um macaco. Era magro e forte, e se prendia em cada galho na descida, e logo todos se reuniam para vê-lo. Reflete que arriscar sua vida foi uma forma de enfrentar a morte a cada descida das árvores, e assim conquistou o direito de viver. Boris Cyrulnik ainda vive aos 87 anos, autor de quase cem livros, e ficou conhecido pelos livros sobre o poder da resiliência-capacidade de enfrentar o desamparo.
É possível imaginar vários nascimentos quando a gente, por exemplo, muda de casa, muda de escola, muda de cidade ou país. Um novo nascimento, um renascimento, uma nova vida, às vezes como desafio e aprendizagem. Imaginar mais que um nascimento pode ser útil para se conhecer como foi mesmo a história de cada um. Que situações foram traumáticas, ou espetaculares, como se enfrentou cada separação, cada união, as desistências, os tropeços e superações, fracassos e sucessos. Aliás, quantas versões da vida cada um tem, percebendo quem mesmo a gente é e quem são os pais, irmãos, familiares. Lembrar que professores fizeram a diferença, as amizades essenciais, vivências de traições, ou da gente como traidor. Que histórias espetaculares se escutou ou leu, quantos silêncios e indiferenças, quantas vezes fomos esquecidos.
Na infância vivi três mudanças de casa, e de cada uma poderia escrever, um nascimento a cada nova casa. Há os que viajam e conhecem países evoluídos, grandes metrópoles, ou os que vivem o nascimento de um irmão com alegria e tristeza, como ganho e perda. Que lugar cada um ocupou no espaço familiar e se ocorreram transformações na importância desse lugar. As metamorfoses ao longo do tempo e do espaço são instigantes, fazem pensar, às vezes fazem sofrer, outras são alívios. A vida é misteriosa, um quebra-cabeça que nunca se completa, mas que vale a pena brincar. Manter o entusiasmo de amar, mesmo com as decepções, pode gerar um viver vibrante entre lágrimas e sorrisos.
Agora está por nascer um novo ano, já começou a despedida do ano das enchentes, da solidariedade dos anônimos, e do filme “Ainda estou aqui”.
Em 2025 completará oitenta anos do final da Segunda Guerra Mundial e é preciso lembrar que foi a guerra da democracia e do comunismo contra o fascismo e o nazismo. O mundo hoje trava um confronto entre o amor a liberdade e a justiça, versus a exaltação conservadora dos incendiários de florestas. Vivemos mais uma vez tempos sombrios, e é preciso pensar como se pode contribuir na construção de pontes entre os que sonham com novos nascimentos.
(Publicado no Facebook do autor)
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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