O ébrio

Virou a garrafa à boca inclinando a cabeça para trás como se estivesse a tocar a trombeta do apocalipse. Bebeu a goles largos e barulhentos. Rápido, como se tivesse pressa em acabar a garrafa mas, na verdade, tinha pressa apenas do próximo gole e vontade alguma de que a garrafa secasse. Estava bêbado desde quando não se sabe. Continuaria bêbado até sabe-se lá quando. Não lhe havia propósito ou força para parar de beber. Apenas bebia. Bebia por beber. Para esquecer de coisas que nem se lembra mais. Para esquecer-se. Para entregar-se. O mundo já o embebedava. Via, ouvia e sabia de coisas que o deixavam zonzo e confuso. Dizia, sóbrio, coisas que pareciam ditas por um bêbedo. Ao menos era assim que pensavam as pessoas sóbrias que o ouviam.

Mais um gole. Sentado com vista para a grande janela da sala desarrumada viu os carros mais parados que andando. Ocupando nacos de asfalto, cada um com um sujeito irritado dentro. As calçadas, vazias de gente, serviam mais para separar a rua dos jardins malcuidados e também vazios. “Para quê cidades para carros? Cidades tinham que ser para gente. Para gente! Cadê gente? Todos enlatados…”

Na tv, ouviu ministros de toga que, há muito tempo atrás, faziam questão de discrição. Suas vidas particulares e, sobretudo, opiniões sobre aquelas coisas da vida e da política que todos têm opinião quando estão à mesa dos botecos, eram sempre misteriosas para o grande público. Coisa apenas para o círculo diminuto da intimidade dos poderosos. Deu mais um gole.

Políticos também. Certamente, tinham opiniões sobre a política. E as tornavam públicas em discursos repletos de ironias e sagacidades. Mas o faziam segundo os rituais próprios da política, onde até as desavenças pessoais eram contidas por algum senso de decoro. Mas hoje, o que há é um mundo onde o poder virou espetáculo tosco. Ministros expõem suas opiniões no comum das redes. Políticos trocam decoro por despudor.

O poder parece coisa menos importante que no passado, mais vulgar. Mais baixo nível. De célebre em seus rituais, tornou-se subcélebre. O caminho para o topo parece ladeira. É preciso rebaixar-se para subir. Tornar-se menos educado, respeitoso, às vezes, menos humano. “Todo mundo é subcelebridade. Todo mundo!”. Gritou para a tv que, indiferente, continuou com sua pantomima e barulhos que a mente entorpecida já não entendia. A garrafa acabou.

Pegou outra. De algo mais forte. Viu um sujeito de cabelos e ideias esquisitas falando na tv. Falava com raiva. Outra subcelebridade que anunciava uma subpolítica. Ele parecia bêbado. “Quem está bêbado aqui?”.

Pensou que, bebendo, o mundo faria sentido. Que só a loucura da bebida combinaria com a loucura que rege a vida. Que só uma mente distorcida compreenderia um mundo distorcido. Que só o bêbado, em sua febre louca e furiosa, poderia ser um pouco humano num mundo tão desumano.

Mas era tudo ilusão. Devaneio de uma mente poluída de tristezas, desilusões e álcool. “Por que me importo com essas coisas? Por que me importo com essa gente doida?”. Entristeceu-se com a garrafa quase vazia. E com o bar vazio. E com o vazio de suas esperanças.

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Ilustração: Mihai Cauli
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