Na cidade em que vivi e cresci para a vida, existe uma portentosa edificação predial conhecida de todos os moradores, popularmente denominada de Salário Mínimo. Sua origem , em memória, recorre aos anos 50. Nasceu espremido e comprimido, entre dois opulentos casarões da economia cafeeira. Como ele, a Voz do Povo, a Lira Operária Bonjesuense, e o Progresso F.C., conformam significativamente o universo simbólico de instituições presentes em minha formação de cidadão. Aos amigos do “movimento”, em terras da vivência adulta, sempre disse que nelas cheguei com a “pauta política e existencial pronta”, da qual nunca me arredei. A força telúrica da lembrança.

Sou de Bom Jesus do Norte e do Bom Jesus do Itabapoana, divisória do ES e RJ, terra do café, açúcar, gado e leite vacum, e do comércio – que de tudo depende. Tríade produtiva que alimenta a manhã, e mais do dia. Como não, terra da velha política do coronelismo e curralismo.

Municípios, delimitados pelo majestoso e caudaloso Itabapoana; Rio da minha aldeia*. Nasce na serra do Caparaó. Desce serpenteando os campos e as matas ribeiras – será que ainda as há? Em sua vereda, forma cachoeiras. De forte correnteza, aquelas do vigor das águas de morro abaixo e do fogo de morro acima, até serenar-se no Vale do Itabapoana. Localização destas, dantes, dinâmicas rurais urbes. De curso próprio, suas margens seguem até seu deságüe, inundando e colorindo o Atlântico Sul. “O rio chega no mar. Depois de andar pelo chão. O rio de minha terra. Deságua no meu coração”. *

Estas Bom Jesus, administrativamente cindidas, formam um espaço socialmente singular. Ainda que não, sem intrigas – daqueles que acham que o seu é sempre o melhor! Tanto assim é una, que sou capixaba, de nascimento; e, fluminense de registro. Bonjesuense de coração! Que nunca bateu de dois lados. Sempre do esquerdo. À esquerda, por um sonho universal.

Cotidianamente, atravessei a ponte em busca de serventias. De estudo, do primário ao científico; do movimento estudantil secundarista, no grêmio José de Anchieta, e na Federação dos Estudantes; do futebol para treinar e jogar no “mais querido”, o Ordem e Progresso Futebol Clube; do “dois pra lá e dois pra cá” *, nas festas das cidades e nas varandas das casas. E os namoros? Ah, a paixão é como o sertão de rosas, e do Rosa*: “o senhor sabe: pão ou pães é questão de opiniães… o sertão está em toda parte”. Paixão é alma, coisa interior. Vale a pena, se não é pequena.*

Hoje, o Itabapoana está inundado de represas privadas. Sugam sua água na estia, secando e assoreando seu leito. Nas águas, liberam a vazante. Ganância! Ganância! Ganância! Assim transferem a pressão sob suas paredes para as das casas dos moradores. Leito de Morte? Como sofrem os ribeirinhos.

As cidades se esvaziaram produtivamente. No campo, morador quase não há. Vivem amontoados nas “favelas rurais” das pequenas cidades. Os novos citadinxs tornam-se serviçais. E com o tempo, fogem para as grandes metrópoles. É o destino? Ah, Emprego? “Mulher! Trabalho não há para laborar”. E, pior, “pode guardar as panelas que hoje o dinheiro não deu”.

Mas, a utopia não morre. Haveremos de superar esse atual período de coronéis e generais, e de jagunços urbano-milicianos, “ungidos” por pregadores exploradores do dízimo de seus fiéis. O Edifício Salário Mínimo resiste ao tempo. Já o instituto salarial do piso base, depois de seguidos anos de valorização, está sob ameaça. Seguiremos na luta, em busca do valor necessário à dignidade da família trabalhadora. Em A Voz do Povo, jornal da cidade, publicaremos vitoriosamente notícias alvissareiras de um novo tempo civilizatório. E, com a Lira Operária Bonjesusense, executando seus dobrados e boleros, tocando A Banda*, seguiremos…de mão dadas, cantando. Nós, passarinhos! Eles, não passarão!

(*) Fernando Pessoa; Caetano Veloso; Aldir Blanc e João Bosco; João Guimarães Rosa; João de Aquino; Paulinho da Viola; Chico Buarque de Holanda.

Em homenagem à minha mãe, Alcione Junger Vieira Figueiredo, professora alfabetizadora por mais de três décadas na cidade.