Cena do filme O Poço.

São inúmeros e regulares os alertas sobre a crescente fragilidade dos homens diante das crises globais, da complexidade dos problemas. Suas amplitudes expõem cada vez mais a incapacidade da sociedade responder aos desafios.

O aquecimento global, a fome, as migrações desesperadas de enormes contingentes populacionais, o número crescente de refugiados espalhando-se pelo mundo e as crises econômicas são problemas que se propagam sem receber uma justa atenção. O exame do que tem sido dito e escrito sobre isso permite identificar que a inação tem correlação direta com a falta de governantes capazes de mobilizar reações globais, como exigem os problemas.

Há pouco mais de dez anos, durante a crise econômica de 2008, a maior desde 1929, os governos se apresentaram desarmados e impotentes para regular os capitais financeiros e especulativos. Vindos de um longo período sob a hegemonia do pensamento neoliberal, os dirigentes agiram como espectadores privilegiados e, pateticamente, ficaram paralisados diante do apetite canibal dos especuladores.

Os inúmeros sinais de aviso foram ignorados, especialmente pelo governo americano, que pavimentou da melhor forma possível os caminhos para saída progressiva dos capitais dos circuitos de geração de valor, renda e emprego, para os da apropriação financeira da riqueza no curto prazo.

A pandemia da Covid-19 apenas desnudou dramaticamente a incapacidade das lideranças políticas mundiais juntarem forças para reagir às ameaças à vida humana. O vírus, ao contrário dos outros desafios, é rápido e mortal; não avisou que viria, e prosperou num mundo, por um lado, planetariamente interligado por redes, mas onde cada ponto de conexão age como se fosse uma ilha isolada.

A visão dominante que orienta os governos ocidentais resume-se a um liberalismo individualista. Até a posse de Biden, o império americano, assim como em 2008, optou por usar de seu poder para salvar os Estados Unidos, e depois impor a conta de seu endividamento ao resto do mundo: “America first”.

Talvez, em alguma medida, os organismos multilaterais existentes não estejam organizados à altura dos problemas mundiais – clima, fome, financeirização das economias, pandemia, entre outros. Pode ser. Mas isso não tira dos governos a responsabilidade mater, pois as lideranças políticas são incapazes de fazer uma leitura correta das transformações em curso.

Para responder às grandes transformações mundiais do pós-Segunda Guerra, foi criada a ONU e muitas outras instituições multilaterais. Depois de derrotar o nazismo e o fascismo, o mundo se organizou em torno do capitalismo e do socialismo. De certa forma, os dois polos mundiais chegaram a um acordo para evitar que os conflitos ultrapassassem limites a partir dos quais todos perderiam. Os capitalistas se prepararam para reduzir os riscos de uma nova crise como a de 1929, ainda viva na memória das lideranças da época, e decidiram fazer mudanças para conservar o sistema. No lado socialista os problemas eram de escassez.

Esta arquitetura de regulação multilateral das relações políticas, militares e econômicas entre as nações começou a ruir com a queda do muro de Berlim. Sem a bipolaridade originária, o Estado americano assumiu-se como regulador do planeta, expôs sem pudor sua hegemonia na política, na economia e no campo militar.

Neste mesmo compasso, a percepção da importância das políticas keynesianas foi substituída pela afirmação do pensamento liberal, na sua versão neoliberal, com a qual o mundo passou a conviver, e que provocou transformações estruturais, entre elas o enfraquecimento dos estados nacionais.

No plano internacional, os Estados Unidos, vencedores do grande embate do século XX com o socialismo, foram libertando-se dos organismos multilaterais, sempre que não precisassem usá-los inteiramente a seu favor. Neste rumo, optaram por desenvolver as relações bilaterais com os países ou, na pior hipótese, com os blocos regionais.

Os espaços vazios foram sendo gerados pelo enfraquecimento dos estados nacionais e dos organismos multilaterais. Do ponto de vista da economia, o capitalismo caminhou para uma crescente financeirização dos capitais, que nas principais economias mundiais significou a abertura de espaços de mercado para bens produzidos pelos países asiáticos. Inicialmente, as lacunas foram ocupadas pelos comportados Japão e Tigres Asiáticos – Hong Kong, Coreia do Sul, Singapura e Taiwan. Alguns anos depois, como uma placa tectônica se deslocando nas lacunas deixadas pela globalização, liberalismo e financeirização, penetrou a outsider China, hoje a grande potência rival do império.

O mundo desde o final do século XX está sob um novo condicionamento estrutural, ainda pouco compreendido quanto às suas múltiplas dimensões. A sociedade vive uma bipolaridade imperfeitamente definida, pois ainda restam muitas incógnitas. Num dos polos permanecem os Estados Unidos, relativamente conhecidos e previsíveis, no outro está a China, carregando os mistérios orientais de uma “transição” impensável, do socialismo para o capitalismo, ou quem sabe, para alguma combinação de ambos.

Este novo mundo em conformação trouxe a eleição de Trump, em parte, como uma reação exótica à expansão chinesa. O império americano fechou-se, construiu inimigos e muros para dividir países e pessoas, separar minorias, impedir migrações, e desmoralizar o enfraquecido regime das democracias representativas. Ao contrário da liderança assumida no final da Segunda Guerra, o governo americano esteve mais preocupado em destruir o ordenamento e enfraquecer a humanidade na sua luta contra as ameaças.

Foi sendo construído um discurso ideológico que prescreve soluções particulares (individuais, familiares) para os problemas sociais e coletivos. Nesta mesma lógica, emerge o conceito de seleção natural, da supremacia racial, da preponderância de gênero, entre tantas outras apologias à morte, à negação da ciência e outros retrocessos à era dos primatas.

O filme do espanhol Galder Gaztelu-Urrutia, O Poço, coloca este dilema recorrente na vida em sociedade: a oposição entre as soluções coletivas versus as soluções individuais.

Muitas pessoas não gostaram do que viram neste drama expressionista e um contingente ainda maior sequer quis assistir. Segundo o diretor, o filme é a expressão da desumanização, da separação entre “ricos e pobres, norte e sul, os que querem ascender e os que concordam em descer e dividir”. A narrativa é sobre a escolha entre uma ação individual ou coletiva. Sobreviver é o objetivo comum aos dois grupos, um acredita no uso das próprias capacidades pessoais para salvar-se, o outro só enxerga a opção pela saída coletiva, na qual uns abrem mão de alguma coisa em favor de outros.

Como aconteceu em outros momentos da história, alguns sugerem não ação, outros da ação coletiva. A escolha deste primeiro grupo, igual ao bolsonarismo no Brasil, não busca a maior eficiência para o combate ao inimigo, está assentada na proposta de seleção natural, onde sobrevivem os mais capazes, mesmo que pela lógica dos fatos, todos venham a perder no final. O vírus não é inimigo de Bolsonaro, é um aliado, a morte é apenas um efeito colateral do caminho da salvação mítica.

Algum dia a história irá cobrar das lideranças mundiais por não terem feito as opções cooperativas, como as sugeridas por Goreng, personagem do filme, cuja missão era convencer a comunidade a aceitar uma solução racional coletiva, onde todos cedem parte, em oposição à irracionalidade psicológica de cada um salvar a si, cujo desfecho lógico seria a morte de todos.

A ONU poderia pilotar ações pela defesa da vida, mas foi uma notável ausente no enfrentamento à pandemia. Escondeu-se burocraticamente atrás da OMS, um órgão importante, mas politicamente fraco para coordenar ações conjuntas de Estados independentes. As Nações Unidas já tinham se mostrado fracas diante dos outros problemas mundiais. Agora, transcorrido pouco mais de um ano no qual morreram quase três milhões de pessoas, não foi sequer proposto um plano mundial para aprovação na Assembleia Geral da ONU ou ainda no Conselho de Segurança da ONU, único órgão com competência para impor ações aos demais países. Talvez seja uma leitura um tanto heterodoxa das atribuições do Conselho, talvez, mas isto é secundário diante da dimensão do problema.

Nas últimas décadas pós-queda do muro de Berlim, sempre que o império americano considerou uma ameaça, ele mesmo se encarregou de impor a adesão de governos às mobilizações políticas e militares – principalmente no âmbito da OTAN. Eles têm sido muito competentes para montar bloqueios comerciais e impor a fome a pequenos países, como Cuba, que paga por estar perto demais de Miami.

Ao contrário de Trump, o novo presidente americano, desde sua posse em janeiro deste ano, tem se colocado como protagonista do chamado à união em torno do combate ao aquecimento global e à pandemia. A mudança nas diretrizes e os resultados obtidos neste curto período de tempo nos Estados Unidos são uma prova irrefutável da importância dos dirigentes e do Estado para orientar comportamentos defensivos, como o do isolamento social e da vacinação, no caso da pandemia.

Biden convidou Bolsonaro a aliar-se nas ações para tornar o mundo mais seguro, próspero e sustentável, mas a carta enviada pelo presidente americano ao presidente do Brasil, recebida em fevereiro, só se tornou pública no dia 18 de março. Quanto a tomar alguma atitude, o brasileiro preferiu ficar no Palácio e comer pastel na feira de Guará.

Não fosse a postura de alguns governadores, especialmente do governador de São Paulo, que apoiou todas as iniciativas do Instituto Butantã na consolidação de sua parceria com os laboratórios chineses, o Brasil estaria praticamente na estaca zero em vacinação.

Estava concluindo este artigo, quando fui agradavelmente surpreendido pela entrevista de Lula à CNN Internacional e, depois, ao jornalista Reinaldo Azevedo, da Rede Bandeirantes. O ex-presidente parece que inspirou-se na postura dos líderes aliados que derrotaram o nazismo e construíram a ordem internacional tal como a conhecemos hoje. No papel de estadista que é, não deixou passar a oportunidade de chamar as lideranças mundiais a se reunirem no combate à pandemia. Sugeriu que Joe Biden e as direções europeias e da China convocassem uma reunião emergencial do G20 para tratar de apenas um assunto: vacina, vacina, vacina… Como sempre, sua postura está sempre um passo à frente, enquanto a de Bolsonaro, passos atrás e na direção errada.

Já passou da hora de pôr um ponto final nesta história toda e firmar um novo pacto mundial, diria Keynes. Mais uma vez ele explicaria a necessidade de uma ação acima de tudo política, para salvar o sistema de si mesmo.

Talvez nossa geração seja incapaz de sair ilesa do Poço, de dar curso à solidariedade, de construir as saídas cooperativas. O mundo não caminha nesta direção. Mas, como em outros momentos históricos, os homens se perguntam se haveria um depois… É como disse o velho: “ o homem não foi feito para a derrota. (…) Um homem pode ser destruído, mas não derrotado.” (Hemingway, O Velho e o Mar)

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