O Museu Nacional é a mais antiga instituição de pesquisa do Brasil, constituindo unidade extremamente importante da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mesmo com o trauma provocado pelo grande incêndio de setembro de 2018, o Museu continua vivo, reconstruindo-se e produzindo muita ciência, ensino e divulgação científica. Isso é possível graças ao esforço abnegado de mais de mil pesquisadores nas diferentes áreas da história natural e da antropologia. São professores, pesquisadores, técnicos administrativos, cientistas colaboradores e alunos de destacadas pós-graduações do Brasil em suas respectivas áreas (Zoologia, Antropologia, Arqueologia, Botânica, etc.).

Na ocasião do incêndio de 2018, muitos chamaram a atenção para o fato de que os reais responsáveis pela destruição de parte do acervo seriam o estrangulamento de recursos a que o Museu vinha sendo submetido e, mais seriamente, o descaso histórico dos governos brasileiros quanto a seu patrimônio científico-cultural. Esse descaso por nossa cultura e pela ciência tem seu ápice no presente, sendo percebido a todo o momento. Nesse sentido, nada mais didático do que o avanço do negacionismo científico em diferentes áreas, ou mesmo as manifestações de figuras públicas como o ex-secretário de cultura (governo federal) que, em seu derradeiro pronunciamento, acreditava que estava em vias de “refundar a cultura brasileira” sobre novas bases. Obviamente, a cultura, como a ciência, não se funda ou refunda pelas mãos e canetadas de um governo, mas pode, sim, ser seriamente ferida, como ocorreu conosco no referido incêndio.

Novamente, agora, a comunidade científica brasileira é impactada com uma novidade semelhante. Segundo informações publicadas na Folha de São Paulo nessa sexta, 26 de março*, a já famosa ala ideológica do governo (a mesma associada ao movimento negacionista) mais bem entendida como um grupo de deputados e assessores mais conservadores e saudosos dos tempos da monarquia, vem trabalhando para transformar o Paço de São Cristóvão do Museu Nacional em Museu Imperial. Esse projeto, que estaria sendo capitaneado pelo tão criticado ministro demissionário Ernesto Araújo, ainda segundo a Folha, um entusiasta do movimento monarquista, não contempla a salvaguarda dos milhões de itens que sobreviveram ao incêndio, tampouco a continuação das fundamentais pesquisas e ensino de alto nível em biodiversidade e antropologia desenvolvidas no Museu Nacional.

Ao contrário de ser movida por uma legítima preocupação em resgatar nossa história, algo que a Antropologia e a Arqueologia do Museu Nacional fazem com primor, tal iniciativa tem finalidade meramente ideológica e simbólica e contrasta profundamente com a história do Museu Nacional, que foi criado dentro de um ideal de nação que transcendia o regime vigente. Criado na monarquia como “Museu Real”, este percorreu seu curso natural, transformando-se no “Museu Imperial e Nacional” e em seguida no Museu Nacional, nome ratificado com o estabelecimento da República e com sua transferência do Campo de Santana para o Paço de São Cristóvão. O Museu Nacional e seu nome são símbolos inequívocos da Nação. Qualquer tentativa de mudança de seu nome ou de sua retirada do Paço de São Cristóvão, que também foi sede da primeira Assembleia Constituinte da República, nada mais será do que uma nova tentativa de se reescrever a história.

Seguimos torcendo para que as informações veiculadas pela imprensa não encontrem eco na realidade e que decorram de mero mal-entendido. Obviamente, não podemos acreditar que haja núcleos monarquistas dentro do governo ou qualquer movimentação na direção de ameaçar a nossa República e seus símbolos maiores. Além do mais, a memória do período monárquico do Brasil é institucionalmente salvaguardada no Museu Histórico Nacional, no centro da cidade do Rio de Janeiro, e no Museu Imperial, na cidade de Petrópolis, no antigo Palácio de Verão do Imperador Pedro II.

Quanto à preservação de nossa história como um todo, esta é bastante necessária e não faltam museus Brasil afora clamando por ajuda financeira do governo federal. Toda a nossa história merece ser preservada em todas as suas facetas, mesmo porque o povo brasileiro tem o direito de ter, permanentemente, acesso a informações que não o deixem jamais esquecer nossos símbolos e a importância da ciência e da educação para o Imperador Pedro II, bem como a chaga da escravidão que caracterizou o período imperial.

Para isso, o Museu Nacional e seu Paço estão em pleno processo de reconstrução em parcerias travadas com instituições brasileiras e estrangeiras. Assim, afastada a sanha dos anacrônicos, seus salões voltarão, seguramente e em breve, a receber e encantar dezenas de milhares de visitantes e estudantes, de todos os níveis sociais, ávidos para aprender sobre as ciências naturais e antropológicas desenvolvidas na mais antiga casa de ciência do Brasil.

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Autores: Marcos Raposo, Professor Associado, Museu Nacional. Doutor em Zoologia e especializado em Ornitologia e Filosofia da Ciência. Marcelo R. de Britto, Professor Associado, Museu Nacional. Mestre e Doutor em Zoologia, especializado em Ictiologia. José P. Pombal Jr., Professor Titular, Museu Nacional. Mestre e Doutor em Zoologia, especializado em Herpetologia.

Referências: Notícia na Folha de São Paulo: Governo quer transformar Museu Nacional em Palácio Imperial e deixar acervo fora – 26/03/2021 – Ilustrada – Folha (uol.com.br) / Resposta da UFRJ