Ou a mesma onda não cai duas vezes no mesmo lugar

No início deste século em um determinado momento predominaram na América do Sul governos com uma identidade de centro-esquerda, com propostas de redução da desigualdade. A partir da possível proximidade de presidentes como Evo Morales, Hugo Chávez, Cristina Kirchner, Lula, Tabaré Vázquez, Rafael Correa e Fernando Lugo alguns analistas começaram a falar de uma “Onda Rosa”, como um movimento de predomínio de líderes reformistas com alto grau de apoio popular. Propostas ousadas como a criação da UNASUL indicavam a possibilidade de uma integração para além dos aspectos econômicos.

Passados alguns anos a maré parecia ter mudado. Seja pelos meios democráticos, pela derrota em eleições, seja pelos golpes disfarçados de julgamentos pelo legislativo, os governos foram sendo substituídos por dirigentes conservadores ou sendo isolados pelas nações vizinhas.

No entanto, uma maré verde-oliva (ou qualquer cor que quiser se atribuir ao conservadorismo) também não se consolidou. Na Argentina os peronistas retornaram ao poder. Na Bolívia, Evo Morales foi derrubado e exilado, para retornar ao país poucos meses após com a vitória do candidato do MAS. Todas as tentativas de golpe contra Maduro até o momento falharam. No Chile, Sebastian Piñera perdeu poder e aceitou a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte. Bolsonaro ganhou no Brasil, mas somente se mantém a custa de comprar o passe do Centrão para jogar no seu time.

Neste contexto devem ser analisadas as eleições mais recentes na região. No Equador, em um segundo turno em que se enfrentaram Andrés Arauz, herdeiro político de Rafael Correa e Guillermo Lasso, um candidato conservador, este último ganhou por pequena margem. Termina um período de mais de uma década de predomínio da esquerda no país, ainda que o governo de Lenin Moreno possa ser considerado mais centrista que o de Correa. A vitória indica mais a rejeição de Correa do que um apoio a Lasso, que conta com pouco apoio no Congresso e teve pouco apoio no primeiro turno. Sem resultados rápidos, em seis meses o novo presidente pode ter sua sobrevivência ameaçada.

No Peru devem se enfrentar em um segundo turno Pedro Castillo, professor e sindicalista representando a esquerda, contra um adversário de direita, que pode ser o economista Hernando de Soto, de cunho liberal, ou Keiko Fujimori, de uma direita populista, na exata acepção do termo (e não no uso corrente da imprensa que qualquer um que não seja liberal moderado é chamado de populista). Mas será difícil a vitória da esquerda em um cenário de grande divisão em que nenhum candidato chegou a 20% dos votos no primeiro turno, apesar das posições conservadoras de Castillo em termos de costumes, que rompem com um modelo que vinha se difundindo no continente em que a posição ideológica no campo econômico se aliava à defesa de causas identitárias nos campos da sexualidade ou etnia.

Qualquer que seja o vitorioso terá dificuldade de governar, como seus antecessores. Sem falar que o país tem vários ex-presidentes presos e um que cometeu suicídio para escapar à detenção. Ao lado da Bolívia de décadas atrás, o Peru tem sido o país com troca mais constante de presidentes antes do fim do mandato na América do Sul.

Há pontos em comum entre vários países (crise econômica e sanitária provocada pela pandemia, escândalos de corrupção entre as elites, negócios com a Odebrecht), mas também diferenças, conforme suas respectivas dependências de commodities e do mercado internacional, particularmente o preço do petróleo e do gás. As motivações dos rumos políticos de cada um parecem ser uma mistura de causas internas, pelas diferenças nas elites locais e o descontentamento popular com a pobreza e o desemprego, e externas, como as condições materiais que os governos têm para enfrentá-las, em que a dependência de exportações e do capital externo têm um papel importante.

Ao contrário do que ocorreu há pouco mais de uma década, quando condições favoráveis do mercado permitiram o custeio de programas de distribuição de renda financiados por exportações e o contentamento dos setores médios pelo câmbio favorável, a situação negativa agora pressiona os governantes e gera protestos. Onde a direita governava, como na Argentina ou no Chile, ela foi punida nas urnas ou nas ruas. Onde a esquerda havia criado raízes, como no Uruguai, Equador ou Brasil, as mobilizações foram no sentido de culpar os líderes eleitos pelos problemas e apoiar candidatos de oposição. Na Bolívia a elite ficou com os golpistas e o povo com o presidente deposto.

De um lado temos partes da população que tem uma profunda identidade ideológica e que reforça suas posições em redes sociais e rejeita diálogo ou mesmo informações que neguem suas convicções. Ao lado destes grupos, que tendem a ser minoritários, há uma ampla parcela que tem pouco interesse pelo debate político e que vota seja por interesses pragmáticos, seja por impulsos de natureza emocional. Isto dá um caráter de imprevisibilidade aos resultados. Nas bolsas de apostas um ano antes das eleições, candidatos como Bolsonaro ou Lasso provavelmente eram azarões, mas ganharam. Partidos ou alianças tradicionais, como os que compunham a Concertación no Chile, ou o PT no Brasil vem derretendo mais rápido que os Glaciais da Argentina, ou sobrevivem graças a velhas lideranças carismáticas.

As margens de diferença na votação em geral têm sido pequenas, mostrando sociedades divididas, juntamente com o acirramento de posições. Praticamente em nenhum país deste continente, no período recente, um candidato de perfil moderado e centrista teve sucesso.

As diferenças entre a votação dos presidentes eleitos e os parlamentares que formam suas bases de apoio nos Congressos tornam a governabilidade uma tarefa difícil, em geral entremeada de possibilidades de impeachment, como vimos no Paraguai, Brasil e Peru. O tão falado Presidencialismo de Coalização, louvado por alguns analistas, é tão sólido quanto o talão de cheques que o governante tem para mantê-lo.

Alguns destes problemas não são exclusividade de nosso continente. As consequências da Covid-19 e do seu impacto econômico estão sendo sentidas em todo o mundo. A emergência de grupos extremistas e apoio a medidas autoritárias também pode ser vista em lugares tão díspares como a China e os Estados Unidos.

Porém aqui nosso passado tem seu peso. Nossas elites não tem a tradição democrática de países da Europa e América do Norte para resistir à tentação ao autoritarismo. Grande parte da população de nossos países não tem apego às instituições formais, com as quais tem pouca conexão e que são vistas, em muitos casos com razão, como um instrumento de dominação para mantê-los alijados do compartilhamento das riquezas construídas em sua sociedade e pelo seu próprio trabalho.

Líderes carismáticos não são uma invenção nossa. Mas é difícil de encontrar uma outra parte do mundo com uma tradição tão rica na formação de caudilhos que se colocam como um veículo das massas para mudar o mundo. O Sebastianismo foi criado pelos portugueses, mas encontrou em países como o Brasil terra fértil para vicejar.

Outras eleições virão nos próximos anos. Mas não deve se esperar nenhuma onda em um ou outro sentido, mas um mar grosso com ondas altas que em alguns momentos podem até ameaçar o barco das instituições democráticas. É preciso estar vigilante e preparado para evitar naufrágios.

***

Clique aqui para ler outros artigos do autor.