Depois de um longo voo, chegando ao Brasil para férias, vindo da França, no aeroporto do Rio de Janeiro me perguntaram se estava vindo da China. De fato, foi o momento em que, pela primeira vez me senti envolvido no problema. Até então, já tinha lido sobre a Covid-19, como algo novo e sério, mas que estava restrito à China e a alguns países asiáticos.

Em fevereiro voltei para França, quando já estavam sendo noticiados os primeiros casos. Ainda não era visível que o problema de saúde iria tomar esta proporção. Inicialmente, assim como outros franceses, comecei a tomar alguns cuidados. Mas não demorou muito e começaram a aparecer os primeiros casos de contaminação na região onde moro e na minha empresa foi adotado o home-office.

Em meados do mês de março, o governo francês decidiu por um confinamento severo até início de maio. Havia ainda muita confusão fruto do desconhecimento do vírus, uns recomendavam o uso das máscaras, outros não, ninguém sabia ao certo como o vírus se propaga, entre outras coisas.

Diante da necessidade de reduzir a circulação de pessoas, o governo francês adotou algumas medidas compensatórias. Uma das mais efetivas é o sistema de “desemprego parcial”, no qual o governo assume total ou parcialmente o pagamento dos trabalhadores temporariamente afastados e as empresas assumem o compromisso de não demitir no período. Diante do retorno, o governo já prorrogou as medidas.

A questão mais atual é a chegada das vacinas. Sobre isso que minha grande amiga Jacqueline pediu-me para escrever, tirar algumas dúvidas que tinha depois do contato com sua família.

Ela vive no Brasil desde 1989, hoje a maior parte de sua vida é no Brasil, mas ela se mantém conectada à França, principalmente porque sua família vive aqui e ela é professora da língua francesa. A família vive no interior da Borgonha, local conhecido mundialmente pelos vinhos, pela alta gastronomia, pelas mostardas. Sua região ficou famosa pelo Poulet de Bresse ou Volaille de Bresse, um frango de denominação de origine contrôlée, quer dizer, só pode ser produzido a partir de galinhas brancas da raça Bresse e criadas em uma área legalmente definida da região histórica e da antiga Bresse, no leste da França. Sua família era uma das autorizadas à criação da galinha com pedigree, que custava alguns anos atrás mais de cem dólares.

Em sua chamada para mim, Jacque mostrou-se surpresa, pois, disse ela: “Falando com a minha família, vejo que quase todos estão bastante desconfiados de tudo e não estão a favor da vacina. Isso me incomoda, pois a França é conhecida por ser um país de pensadores e até hoje nutre o exercício da reflexão. Esta característica é cultuada pelos franceses, não apenas pela elite, mas de uma maneira geral em todos os rincões do país. O que tenho visto é uma França muito diferente daquela que deixei anos atrás.”

Porém, continuou me interrogando, queria entender por que a França, hoje, é o país que se mostra mais desconfiado de toda Europa. Neste momento em que tem que ser ágil, em que o mais importante é entrar em ação para enfrentar a pandemia contra o ataque mortal do coronavírus, com a arma que cientistas do mundo inteiro colocaram nas mãos da humanidade. Por que, continuou perguntando “o francês resolveu escutar conselhos obscurantistas, que na verdade advogam pela morte?”.

Acho que por enquanto ninguém está conseguindo explicar este fenômeno, uma enquete recente mostrou que somente 40% das pessoas querem ser vacinadas. Não existe exatamente um movimento organizado contra vacinas, como foi o caso do Mouvement des gilets jaunes (coletes amarelos). Mas não acho impossível que venham a surgir, ainda existe no país uma cultura marcante de manifestar o desagrado. A cor do colete não poderia ser verde, já usada na defesa do meio ambiente, nem azul, cor usada pela polícia…

Existem, ao contrário, vários movimentos organizados para chamar a atenção da população. Um destes exemplos é o chamado por Stanislas Nordey e 200 artistas pela vacinação “c’est le seul moyen de sortir de ce bordel”.

Sua entrevista ao jornal Liberation traduz bem o pensamento médio das ruas francesas. Segundo ele, o país está paralisado em torno de polêmicas “um pouco circulares, em que todos acusavam ou defendiam o governo se perguntando se Olivier Véran era um bom ministro ou não, se Macron estava fazendo as coisas bem ou não”. O movimento é para encerrar com isso e dizer: “chega de perguntar se as políticas estão indo bem ou não, agora cabe a nós assumirmos e nos engajarmos [vacinando].”

Os governantes também não conseguem explicar a rejeição à vacina, mas esta atitude tem sido até certo ponto confortável para o governo francês, que padece de um outro fenômeno bem atual no país, que é a incrível capacidade francesa de complicar ainda mais as coisas.

O mundo inteiro fala da burocracia francesa, por um lado como extremamente consciente do papel que ocupa no Estado, mas por outro, pela lentidão. No momento, a agilidade é tudo, pois estamos falando de vida e morte, porém, a coisa ficou complicada. Até o dia 5 de janeiro de 2021, uma pessoa idosa que quisesse tomar a vacina tinha de assinar um documento dizendo que aceitava e este seria validado depois de cinco dias de análise!!!! Felizmente, estes procedimentos foram parcialmente cancelados.

Para combater a rejeição à vacina, dia 4 de janeiro os jornais noticiaram que os médicos iriam receber um bônus de 5,4 euros por cada pessoa vacinada e registrada na base de dados do governo. A ideia é que os médicos esclareçam cientificamente a importância da vacina e de ter um banco de informações sanitárias atualizado. O assunto é muito sério, mas nem por isso deixa de merecer uma piada. Este é um dos memes que circulam nas redes sobre os resultados da campanha de vacinação na França.

Para quem não domina o francês profundo, “Mauricette” é o nome de uma (apenas uma) senhora simpática e bem idosa. Nas rodas familiares francesas, sem muita ciência, se diz que na dúvida estão vacinando os mais velhos para ver se funciona, outros, mais humanos, sabem que é para proteger os mais vulneráveis. Brincadeiras à parte, nos primeiros dias de vacinação, a Alemanha tinha vacinado quase sete pessoas a mais que a França. O país não havia se preparado bem para o esforço.

Na Alemanha, foram criados “vacinódromos”, lugares específicos para onde as pessoas devem se dirigir para vacinação e os resultados começaram a aparecer. O francês aguarda ser chamado (convidado). O plano do governo é vacinar primeiro os mais vulneráveis, depois os que desejam ser vacinados. Mas quando se pergunta a um francês se ele quer ser vacinado, muitos responderão que “sim”, mas depois, eles querem ver o que vai acontecer antes de tomar a decisão. Mentalidade bem francesa.

Minha querida amiga Jacqueline, eu estou na fila dos que querem ser vacinados logo que possível e me desculpe se não soube responder muitas dúvidas tuas. Tenho certeza de que estamos melhor do que vocês aí no Brasil, onde o governo parece estar jogando a favor do vírus e contra as pessoas. Aqui, apesar de tudo, já temos a vacina, já começou a vacinação e campanhas estão sendo feitas para esclarecer a população.

Mas, sinceramente, não sei como o presidente do Brasil pode ser convencido da importância da vacinação e da ciência. Vocês estão com um problema maior.