Eunice Paiva revela uma coragem e sabedoria que a fazem ir com seus filhos muito além do desamparo. Diante do fotógrafo, ordenou a seus filhos: “Riam, riam”.
Sigmund Freud buscou, como escritor, uma estética para descrever os sonhos, os casos clínicos e suas teorias. Tinha preocupações com a clareza da exposição, e nunca dissociou a escrita de sua clínica, a escrivaninha de seu divã, onde se deitavam os pacientes. Seus ensaios integram literatura, mitos, pensadores, para pensar a realidade individual e social. Foi um apaixonado pela escrita e os escritores, por isso sofria quando percebia estar escrevendo mal.
Sofreu para escrever “Inibição Sintoma e Angústia”, livro publicado em 1926, essencial para se estudar tanto a angústia como o desamparo. Para Peter Gay, autor da principal biografia de Freud, essa é uma obra desalinhada, mas fundamental. O tema principal de “ISA” é a angústia, palavra que ao longo de sua obra sempre teve destaque. Ao chegar ao ponto X, no final do ensaio, escreve: “A angústia é a reação ao perigo”.
A angústia pode ser real, sentida frente a um perigo externo, um perigo conhecido; ou neurótica, a angústia que se sente diante de um perigo desconhecido, um perigo pulsional. Uma das provas das dificuldades de Freud de escrever esse livro é que, depois de definir a angústia, ele seguiu refletindo, e acrescenta o capítulo XI, que define como Complementos. E aí escreve “Observações suplementares sobre a Angústia”, e questiona pela primeira vez: “Qual é o núcleo, o significado da reação de perigo?” Responde: “É, claramente, a avaliação de nossa força em comparação com sua grandeza, admissão de nosso desamparo em relação a ela: do desamparo material, no caso do perigo real; do desamparo psíquico, no caso do perigo pulsional… Chamemos traumática tal situação de desamparo vivida… situação traumática do desamparo”. E aí, Freud conclui: “A angústia é a original reação ao desamparo no trauma, que depois é reproduzida na situação de perigo como sinal de ajuda”. Portanto, na origem do humano está o desamparo, depois vem o trauma e logo a angústia.
Para Lacan, na análise o analisando se encontra com o desamparo, um encontro traumático tanto com a perda como com a separação. Um exemplo clássico são as crianças que nas brincadeiras repetem as situações penosas e mudam, assim, da passividade para a atividade, diminuindo o sofrimento traumático. A criança, diante das separações, cria jogos como o Fort-da do clássico livro “Mais além do princípio do prazer”. Assim, consegue criar meios terapêuticos que diminuem os sofrimentos.
A gente cresce, constrói amizades, faz esporte, se liga na natureza, depois na arte, em tudo está a criatividade que ampara. Cada um busca seu caminho para ir além do desamparo, através de apoios em outros, nas palavras, nas conversas, na escrita. Ir além do desamparo é criar amparos diante das ameaças traumáticas do desamparo.
A palavra desamparo vem aumentando de importância na psicanálise. Quando estudei o humor, aprendi que ele é um dos destinos criativos diante do desamparo. Aprender sobre o desamparo, tanto em Freud como em outros autores da Psicanálise, é possível na leitura do livro “PÂNICO e DESAMPARO”, do psiquiatra e psicanalista Mário Eduardo Costa Pereira. Livro recém-lançado em terceira edição, no qual o pânico é o centro do livro, mas é estudado à luz do desamparo, pois o pânico é uma defesa diante do desamparo. Nessa edição há dois prefácios: um do conhecido psicanalista francês Pierre Fédida, seu orientador do doutorado feito em Paris há uns trinta anos; e um segundo escrito para essa edição pelo conhecido psicanalista Christian Dunker. A primeira frase desse prefácio é: “O livro que o leitor tem em mãos é um clássico da psicanálise brasileira”. No capítulo 12 do livro, o autor trata de estudar o que Lacan escreveu sobre o desamparo, pois ele foi o primeiro a perceber o imenso alcance dessa noção freudiana. Define o desamparo como fundamento último da vida psíquica, portanto, como se pode ler na conclusão do livro: “Uma vida é sem garantias”.
Em alemão a palavra desamparo é Hilflosigkeit, onde Hilf é apoio, los, sem, e keit se usa para criar o substantivo. O bebê começa a vida desamparado desde o ponto de vista físico e psíquico. Um bebê é totalmente dependente “da vivência de satisfação” devido ao seu desamparo. Freud já escreveu desde o “Projeto”, que o desamparo do bebê é uma experiência expressada pelo choro, grito em que a necessidade e o amor se unem. Essas vivências marcam a memória do bebê quando ainda não falava. O desamparo é um traumatismo originário, um sentimento de impotência que pode gerar terror. Os amparos que tanto um bebê recebe são essenciais para viver, para ir mais além do desamparo.
A palavra desamparo expressa a falta de amparo, uma fragilidade, um sentimento de desproteção. O desamparado não tem apoio, e por isso busca imaginar e construir um lugar de onde se fortalece e se ampara.
Lembro agora uma experiência de quando tinha uns seis anos, que foi a de subir em uma árvore que tinha em frente à minha casa. Não era difícil subir e fui aos poucos ascendendo até ficar alguns metros acima da rua, e me sentei num entroncamento de galhos com o tronco. De cima, eu, que era pequeno, via os adultos como pequenos e ninguém me via na altura onde eu estava. Lembro com um sentimento de conquista, foi uma vitória inesquecível, e agora percebo que naquela experiência estive além do desamparo. Do alto da árvore me senti poderoso, amparado pela árvore e me sentindo fortalecido. Fazer do desamparo um amigo, construir um amparo, criar pontos de apoio e aprender a se apoiar também na imaginação. O desamparo não é só pessoal, há o desamparo familiar, de uma cidade, de um estado, um país, e o desamparo mundial que hoje se vive. Ir mais além do desamparo é caminhar em busca de menos sofrimento, é ir em busca do amor e da alegria. Reler o livro de psicanálise “Pânico e Desamparo” foi um pouco como subir em uma árvore para ver a vida desde outra ótica, uma melhor perspectiva.
Algo semelhante vivi lendo o livro “Ainda estou aqui” de Marcelo Rubens Paiva e agora vendo já duas vezes o filme baseado no livro. A história começa com a família de um deputado do velho PTB, Rubens Paiva e seu assassinato na tortura. Depois de sua morte, nasce uma líder, Eunice Paiva, que comandou só os cinco filhos, fez a faculdade de Direito e passou a defender os direitos dos indígenas e lutar contra a ditadura. Diante de seu desamparo – nem o corpo do esposo foi entregue –, ela revela uma coragem e sabedoria que a fazem ir com seus filhos muito além do desamparo. Sua reação frente ao trauma do desaparecimento de seu esposo, de um luto terrível diante do desaparecimento do corpo do esposo morto, ela vai à luta. A vida sem garantias alimenta o viver como aventura, como fez Eunice Paiva ao ordenar aos seus filhos, diante do fotógrafo: “Riam, riam”. Era preciso rir para revelar uma família em luta pela vida, uma família corajosa diante da ditadura militar. Aí a família Paiva, uma família brasileira, foi mais além do desamparo. (Publicado no Face do autor)
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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