Fim de greve. Volta ao ofício cotidiano. Neste ínterim houve o lançamento do livro, organizado por mim, Percursos psicanalíticos no Brasil (2024), no qual entrevisto três grandes referências da psicanálise em nosso país – Teresa Pinheiro, Jurandir Freire Costa e Joel Birman – a respeito de alguns pontos importantes em nosso cenário atual, já há muito tempo negligenciados pela comunidade psicanalítica vez ou outra:

  • a) O que é ser um psicanalista?
  • b) Como se forma um psicanalista?
  • c) Como isso se dá no Brasil?
  • d) O que há de propriamente específico, brasileiro, na psicanálise que se exerce no Brasil?

Cada um dos entrevistados, por mais que os três tenham sido importantes psicanalistas, professores e pesquisadores universitários, cujas passagens por Paris transformaram suas trajetórias tupiniquins, tem uma história singular – e, assim, cada um deles responde àquelas questões a partir de seu próprio percurso psicanalítico, que ocorreu na maior parte, no Brasil – o que oportuniza ao leitor um registro escrito de parte importante da história da psicanálise no Brasil, dos anos 1970 para cá.

Tais discussões, por mais que sejam importantes por si mesmas, ganham certa urgência tendo em vista algumas pautas que se colocaram ao movimento psicanalítico no Brasil (e, talvez, também alhures):

1) Ao mesmo tempo em que se proliferam falcatruas, prometendo – em geral na internet, essa aparente terra de ninguém -, formações psicanalíticas relâmpago (às vezes em um mês!), notam-se outros tipos de aberrações em nosso território nacional, como, por exemplo, uma formação psicanalítica cristã, coisa muito estranha, tendo em vista que toda a experiência analítica, parafraseando Nietzsche, se localiza Além do bem e do mal (NIETZSCHE, 1886); se há algo que um paciente de psicanálise cedo percebe é que no setting analítico se instaura um levantamento do juízo moral, coloca-se a crítica moral entre parênteses, para que o sujeito possa falar a verdade sobre si e possa elaborar sua posição desejante num espaço que não replique o que encontra na realidade externa, realidade que lhe instituiu o cenário condicionante para que ele tenha recalcado certos conteúdos e tenha construído sua neurose. O espaço analítico é, nas palavras de Freud, um playground onde o paciente pode remodelar, através de sua neurose de transferência, seu modo de habitar e se relacionar com aquela realidade externa de maneira a não recuar diante de seu desejo (FREUD, 1914; LACAN, 1959-60).

Ao estabelecer a regra da associação livre por parte do analisante e da posição do psicanalista que opera com a adoção de uma atenção uniformemente suspensa ou atenção flutuante, como sua condição de possibilidade mesmo, a psicanálise necessariamente sai do terreno moral – seja ele cristão, budista, umbandista ou de ordem não religiosa, pouco importa (FREUD, 1912, 1913, 1927). E se ali recai, deixa de ser psicanálise, tornando-se discurso do mestre, o avesso da psicanálise (LACAN, 1969-70). Para além disso tudo, há, no Brasil, o surgimento de cursos de graduação em psicanálise em algumas universidades privadas, sob assentimento do MEC da era Bolsonaro. Tal iniciativa é inédita na história da psicanálise. Já me posicionei sobre o assunto, tentando revelar o embuste que ela encerra. O leitor encontrará minha posição nos seguintes posts, que devem ter incomodado muita gente, uma vez que recebi e-mails anônimos intimidadores:

Mas é também importante dar voz àqueles três psicanalistas, posto que são respeitados em todo o território nacional por sua trajetória de pensamento, crítica e clínica exemplares. Que seus depoimentos sirvam – ao menos aos leitores desta obra – como antídoto contra traquinagens mercadológicas que, em troca, dão ao suposto formando em psicanálise, apenas um diploma, mas – talvez por isso mesmo -, não transmitem a psicanálise, não formam analistas, desmontam a verve subversiva constituinte da psicanálise, tornando-a mero treinamento profissional para não saber escutar o sofrimento alheio, deixando o paciente ainda pior – como aquela mulher que detestou a “Psicanálise ‘silvestre’ [selvagem]” (FREUD, 1910) – e o sujeito que se supõe analista nestas circunstâncias ainda mais perdido que cego no meio de um tiroteio ou tal qual o eu, sicofanta, vasilina, que Freud descreve como um servo tolo querendo atender a três senhores e que Lacan sublinha que, ao mesmo tempo em que quer servir, este eu não quer saber sobre o Inconsciente (FREUD, 1923; LACAN, 1954-55).

Sendo os três entrevistados – como eu mesmo – professores universitários, ainda se oportunizou demarcar de que modo a psicanálise pode estar na universidade e por que até mesmo professores que lecionam a psicanálise como disciplina universitária reconhecem a universidade como um campo senão refratário, ao menos insuficiente para a transmissão da psicanálise e a formação do psicanalista.

2) A extrema direita brasileira, quando não fez uso a seu favor do significante psicanálise, deturpando-o, ao retirar dele a força revolucionária da descoberta do Inconsciente e a verve subversiva tanto da sexualidade perverso-polimorfa (FREUD, 1905) quanto da silenciosa pulsão de morte (id., 1920) – por exemplo, através da invenção deste monstro chamado psicanálise cristã, que nada tem de psicanálise e muito tem de controle das almas e pregação religiosa -, descreveu a psicanálise como instrumento de doutrinação ideológica inimiga e, portanto, como algo a ser eliminado. Era preciso que importantes psicanalistas esclarecessem o leitor, com rigor e não de modo panfletário (que é o modo como sua disciplina é atacada pela extrema direita), a respeito do lugar da psicanálise no que se poderia chamar de arena política.

3) A psicanálise também sofreu importantes críticas dos saberes emergentes, antes silenciados ou desqualificados de verdadeiros, tanto pela tradição acadêmica quanto pela psicanalítica. Refiro-me a críticas oriundas não da extrema direita, mas da região progressista do pensamento e das lutas, da teoria queer, dos pensamentos feminista, antirracista e decolonial. É por conta do último, em particular, que cabe a pergunta se há uma psicanálise brasileira. Se sim ou se não, seria preciso escutar argumentos que justificassem a posição do entrevistado, posto que paira sobre o campo psicanalítico – ao menos por parte de alguns críticos – a suspeita de que a psicanálise é, ao mesmo tempo, produto importado da metrópole europeia e instrumento capaz de tornar o colonizado ainda mais subjugado aos valores e maneiras do Atlântico Norte e, por isso, seria instrumento de alienação, quando ela promete o contrário.

Como se pode perceber, este livro é mais uma dentre muitas iniciativas recentes – realizadas não só por mim, como testemunha este blog, aliás, mas também pela psicanálise de rua, pelo coletivo Psicanalistas Unidos pela Democracia (PUD), pelo Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos (EBEP), pelo Mestrado profissional em Psicanálise e Políticas Públicas da UERJ, pelos psicanalistas engajados na luta antimanicomial, etc. -, de aproximar o grande público do que os psicanalistas pensam, bem como aproximar os psicanalistas do que aquele público pensa, levando a psicanálise para fora das quatro paredes dos consultórios e ambulatórios, por reconhecer que ela não só pertence à polis, como só é possível na polis, tendo ela, sempre, relações de transigência com esta polis. A psicanálise é política; como Lacan proferiu em seu O seminário livro 14: a lógica da fantasia, ‘O Inconsciente é a política’ (LACAN, 1966-67).

Espero que esta breve e apaixonada apresentação do livro tenha despertado o interesse do leitor – seja por motivos psicanalíticos, históricos, políticos ou pela excitação que o desejo do Outro pode proporcionar.

PS: informo que este é o volume 1 de uma série de livros que se propõem a registrar – sempre com entrevistas – os percursos de grandes nomes da psicanálise brasileira, com o intuito de escrever nossa história, para que possamos elaborar um legado, conhecer mais de nós mesmos e sabermos nos posicionar nos meandros e encruzilhadas dos caminhos trilhados por nossos mestres. O esforço brasileiro de apagar a história é, ele mesmo, histórico e parte do caráter colonial de nossa sociedade – meu trabalho é, por isso mesmo, um ato de resistência política que opera de modo diferente da resistência no sentido psicanalítico aqui (FREUD, 1912): enquanto a segunda pode ser entendida como tudo que intervém para que não se diga ou escreva, minha resistência política está em fazer dizer e escrever.

O livro se encontra à venda em livrarias cariocas como Universo e Blooks. Em Recife, na livraria Jaqueira. Em Natal, na livraria Nobel. Em Porto Alegre, na Bamboletras. Em São Paulo, na Livraria da Vila, na livraria Cultura e na Drumond. Compras online:  na Martins Fontes e na Amazon.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
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