Uma reflexão sobre as bases da teoria monetária

Já se vão séculos desde que emergiu uma nova forma de ciência empírica, calcada na formulação e testagem de hipóteses, segundo uma metodologia bem definida. É errado dizer que a convergência entre teorias e fatos experimentais é uma novidade da Era Moderna; a astronomia grega é um exemplo perfeito de busca sistemática de adequação da modelagem teórica aos dados empíricos. A novidade não residiu nisso, mas na forma como essa relação entre teoria e experiência era verificada e legitimada. Fazem-se hipóteses, das quais resultam desdobramentos lógicos que, por sua vez, são confrontados com os resultados de experimentos controlados, em que se procura isolar a influência dos elementos causais investigados. Segundo a interpretação ortodoxa do método, caso os resultados não estejam de acordo com as proposições derivadas das hipóteses em análise – dentro da margem de incerteza da medida, pressuposta por todo processo experimental – descartam-se as hipóteses como falsas.

É importante ressaltar que a observância dessa metodologia, com todas as suas implicações em termos de conclusões, está longe de constituir um consenso entre os filósofos da ciência. E, de fato, há muitas dúvidas se a ciência real, em sua evolução concreta, respeita estritamente essa prescrição. Muitas vezes, resultados experimentais aparentemente estão em desacordo com a teoria vigente sem que a comunidade científica esteja disposta ao abandono do conhecimento estabelecido e a um reordenamento radical. As discordâncias não podem, porém, ser ignoradas. A ciência adota, então, uma das duas alternativas: abdicar da generalidade da teoria até então vigente, circunscrevendo sua aplicabilidade a certo conjunto de fenômenos com os quais está em harmonia, ou a adoção de hipóteses adicionais (“ad-hoc”) com o objetivo de promover a conciliação entre teoria e fatos observados.

A ciência econômica é uma ciência social e, como tal, enfrenta as dificuldades metodológicas ligadas ao fato de ser quase virtualmente impossível a realização de experimentos controlados, visto seu objeto de estudo ser grupos sociais em suas interações reais. No entanto, apesar disso, o confronto entre previsões teóricas e dados empíricos continua a ser um elemento determinante de legitimação do saber constituído.

Analisemos, contudo, o caso da teoria monetária ortodoxa, a chamada Teoria Quantitativa da Moeda. Esse modelo estabelece relações simples e diretas entre algumas variáveis macroeconômicas, quais sejam, a quantidade de moeda circulante na economia (M), a velocidade de troca dessa moeda (V), a produção total de bens compráveis (Y) e o índice geral de preços (P). No caso, a relação proposta é MV = PY. O modelo assume então duas hipóteses: a de que a velocidade de troca, V, depende de hábitos sociais sedimentados, enquanto a produção Y depende do capital e da mão de obra existentes, bem como do conhecimento tecnológico disponível. Tanto os hábitos, como os fatores de produção e os recursos tecnológicos não seriam alteráveis em curto prazo, de modo que seria razoável assumi-los como constantes. A consequência matemática imediata que daí se extrairia seria a relação de proporcionalidade direta entre a quantidade de moeda circulante e o índice geral de preços: mais moeda circulando implicaria inflação.

Os estudiosos buscaram nos dados da série histórica confirmação para esse modelo e suas hipóteses. Para tanto, confrontaram os dados das duas quantidades, vislumbrando, de fato, uma proporcionalidade entre elas. São figuras encontráveis em livros de Macroeconomia.

Todavia, como bem destacou aqui no Brasil o economista André Lara Rezende, em seu livro Camisa de Força Ideológica, nos anos que se seguiram à crise econômica mundial de 2008, diversos países ampliaram enormemente suas bases monetárias, multiplicando a quantidade de moeda circulante em algumas vezes. Ocorre que os índices de inflação não reagiram de acordo; pelo contrário, mantiveram-se durante quase dez anos nos mesmos baixos valores em que se encontravam no início do período, em uma flagrante violação das previsões monetaristas. Poderíamos, talvez, pensar em uma resposta conceitual a esse desafio, objetando que as relações postuladas entre moeda e preços não sejam localmente válidas, do ponto de vista temporal, isto é, não sejam válidas instante a instante; que, diferentemente disso, seriam válidas apenas em escalas de tempo suficientemente grandes. Entretanto, quando novamente consultamos os dados empíricos invocados para dar suporte evidencial a esse modelo ortodoxo, vemos que a correlação é buscada década a década, apontando, pois, essa escala como aquela em que se espera que o comportamento seja válido. Ora, como visto, isso é eminentemente falso na década que sucede à crise de 2008. Trata-se, pois, de um desmentido empírico flagrante à teoria tradicional.

Como dissemos, a ciência não pode ignorar uma anomalia. Ela precisa corrigir o status da teoria original, reduzindo a uma formulação válida em um domínio restrito de fenômenos, ou acrescentar a essa formulação suposições complementares que forneçam a explicação para a aparente discordância entre previsões e dados. Em ambos os casos, a consequência é a necessidade de um novo cenário teórico. Os desdobramentos da antiga teoria precisam passar por novo escrutínio, a fim de se verificar em que medida foram comprometidos pela reestruturação teórica que se fez necessária. Se concluímos que a teoria antes tida como geral é restrita a determinados contextos, seus corolários também se restringirão ao mesmo domínio de validade. Se, por outro lado, novas hipóteses, antes ignoradas, lhes são apostas, precisamos investigar quais as consequências que trazem para a doutrina até então estabelecida. Assim avança o saber científico. Parece que é a resposta que a ciência econômica precisa nos dar.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone 

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