A força da direita nas eleições municipais

O demônio de direita

“O diabo tem muitas caras, senhor…”
“…um fulano que ainda jovem inventou um negócio. O Narco… se havia constituído num herói social, o ideal do homem com colhões e que graças a esses colhões havia chegado onde tantos queriam.”
Uma descrição de Pablo Escobar em Namérica de Martín Caparrós

I

Suficientes para indicar os dois que iriam ao segundo turno, os números de votos em cada um dos três candidatos ponteiros, no entanto, marcaram um quase empate. Assim se manifestaram os eleitores de São Paulo, capital. A partir daí começam as leituras. Uns 70% teriam votado contra o atual prefeito. Ou seriam 70% os que teriam votado contra a esquerda e os eternos comunistas – como arengava um dos candidatos. E 70% os que teriam votado justamente para evitar a eleição desse candidato, o autodenominado coach. Frigindo mais os ovos, certamente se encontrará uma unidade menos capilar e que, muito provavelmente, vai determinar quem leva majoritariamente os votos dos paulistanos. Muito provavelmente, a maior parte dos votos do momentaneamente escanteado Pablo Marçal migrarão para o ex-vice-prefeito Ricardo Nunes. Uma maioria significativa dos moradores da capital paulista escolhe, elege, apoia, se identifica com essa cara da direita formada pela dupla que no primeiro turno quase se estripa frente às câmaras das TVs. É brutal. Direita x ultradireita? Ultradireita x direita? A ordem dos fatores não modifica a expressão do eleitorado paulistano em sua grande maioria. Os apoiadores por detrás de cada um dos candidatos brigam por abocanhar a maior fatia dessa gente e pela perspectiva de poder que lhes parece mais segura. Não há muita novidade nisso.

II

(Chama a atenção a louvável insistência com que ultimamente os políticos de direita se referem a si mesmos e aos seus como políticos de direita. Pois todos nós nos recordamos, e não faz tanto tempo assim, que a esses mesmos políticos o que mais lhes agradava era dizer que isso de direita e esquerda era coisa ultrapassada. É que não faz tanto tempo assim, tinham vergonha e agora já ninguém se importa e é até sinal de adaptação ao mundo novo, esse no qual o que conta é o sucesso individual e nada além disso. É o novo. São os novos. É a própria ideia do que é a última criação humana. A novidade em si mesma. Elon Musk e sua multinacional de fofocas para criar ondas de opiniões e meter o bedelho e influenciar os assuntos públicos na defesa dos seus interesses privados e, é claro, os novos milionários e suas técnicas de produzir fortunas sem fabricar nada, as redes de influenciadores ou como disse o coach de Goiás, o Quinto Poder. Será isso?)

III

As pesquisas iniciais para o segundo turno são uma fotografia dessa realidade e o atual prefeito Ricardo Nunes, apoiado por boa parcela do bolsonarismo na capital com o governador do estado na cabeça, aparece com uma vantagem de 18% sobre Guilherme Boulos. A tarefa que Boulos tem pela frente é hercúlea, monumental, épica. Será possível seduzir esse eleitor? Convencê-lo com palavras e gestos? Com apelos à memória e à razão? Qual discurso é capaz de fazer isso? Existe esse discurso? Ele pode ser criado? Porque assim deveria funcionar a política. Poderia ser assim. Para isso, em tese, se organizam as campanhas, se permitem os debates de ideias e programas, a apresentação de propostas, a apresentação das biografias. Para que se possam conhecer os interesses que cada um defende e representa porque essa, em tese, é a base da democracia representativa. Mas, como disse num artigo anterior, tendo em mente as análises de Tom Frank em O que há de errado com o Kansas? (2004), “não são poucas as vezes em que a classe trabalhadora e as classes populares em geral abrem ‘mão de qualquer cálculo racional sobre seus interesses econômicos’ em favor de ódios e rancores facilmente manipuláveis.” Mas não apenas isso. Há também um espesso caldo de ignorância e desinformação cuidadosamente cultivado pelas elites, década após década, desde o verdadeiro parto – e isso também é essencial para a existência da democracia representativa na sociedade capitalista.

IV

“O Nunes pode ser de um partido de esquerda, mas o Boulos é ainda mais à esquerda”, disse Marcelo Batista, 65 anos, cabeleireiro no bairro paulistano Vila Formosa há 34, em reportagem do portal UOL. Marcelo conta que não votou no primeiro turno, “mas no segundo, vai às urnas apoiar Nunes, para evitar uma vitória do psolista. Como lembra a mesma matéria, durante a campanha, “Marçal repetiu que todos seus adversários eram de esquerda, e integravam um ‘consórcio comunista’ contra sua candidatura…”.

V

Há muita pressa por parte de alguns analistas em descartar esse “personagem tão grotesco” – como se referiu um deles ao outsider Pablo Marçal. É claro que esses outsiders ou franco-atiradores podem e, provavelmente, serão repelidos pelo sistema político partidário tal como existe agora. Pelo menos inicialmente. Mas o fato importante é que eles estão pipocando aqui e ali planeta afora, bordeando e se alimentando da mesma energia que faz crescer a ultradireita em quase todo o planeta e se utilizando dos mesmos aparatos técnicos que Marçal chama de quinto poder como mecanismo de mobilização e organização política, a internet, ao invés dos partidos. Ao mesmo tempo se autoproclamam antissistema. Na mesma reportagem citada acima, uma moça chamada Monique, de 25 anos, justifica seu voto no empresário da internet (ou chamem-no como quiserem) porque ele é antissistema: “O sistema vai defender quem eles querem defender, para se manter no poder, colocar os chegados”. Ainda segundo a matéria, “para ela, o empresário venceu em toda a cidade e a urnas foram totalmente burladas”. Pouco lhe importa que o próprio Marçal tenha reconhecido o resultado das urnas, como lembrou o UOL. Porque a verdade é que a realidade pouco importa à Monique, ao cabeleireiro Marcelo Batista e aos milhares de seguidores do coach. “A jovem afirmou se informar principalmente pelo Instagram – rede em que a Justiça derrubou os perfis de Marçal três vezes durante a campanha, por suspeita de abuso de poder econômico e disseminação de conteúdo falso” – encerra a reportagem do UOL.

VI

Uma amiga muito querida me enviou alguns vídeos curtos, desses de Instagram, por onde a Monique se informa das coisas do mundo, ou YouTube, nos quais são exibidos alguns desses vídeos (dos encontros/cultos/celebrações). Claro, sou à minha própria maneira um idiota consumado, ou pelo menos um ignorante incorrigível. Todo mundo já deve ter visto algum desses cursos ou encontros etc. Menos eu. Não há muita diferença de qualquer outro culto ou celebração da Igreja Universal do Reino de Deus ou dos seguidores do Silas Malafaia. Mas aqui eles vão diretamente ao ponto: dinheiro e sucesso empresarial, enriquecimento pessoal rápido e de qualquer modo, virilidade empreendedora injetada nas veias. Ainda que também com uma pitada de religião. Uma ligeira inversão da fórmula Edir Macedo e afins. Em ambos os casos, em seguida, e como era de se esperar, a busca do poder político para consolidar e ampliar as riquezas materiais.

VII

É certo que por ora as estruturas políticas tradicionais podem e eventualmente estão repelindo ao menos em parte esses outsiders e seus mecanismos de atuação. (Nessas últimas eleições, houve o fortalecimento das máquinas partidárias tradicionais e o PSD de Gilberto Kassab, com um crescimento planejado e consistente, se tornou o partido com o maior número de prefeituras do país, desbancando o tradicionalíssimo MDB. Há que se reconhecer que poucas figuras são mais díspares que Kassab e Marçal – pelo menos no que diz respeito aos modos e às formas.) Mas talvez seja um erro creditar o crescimento espetacular da candidatura do pregador coach a um incidente de momento. O que parece mais certo é supor que ele é a expressão de uma nova realidade social, um estado de estupidificação consolidado e em crescimento, com o qual é capaz de se comunicar, alimentando-a, fazendo crescer suas energias – como faz com os alunos dos seus cursos. A adesão ao seu credo político, como ele mesmo faz questão de destacar, é 100% digital – para usar um conceito precioso dos anos 1970, uma adesão 100% desterritorializada. Não é neste ou naquele bairro, nesta ou naquela igreja, seu partido, na realidade, prescinde de sede e se tem sigla é porque a legislação assim o obriga. E isso não é desimportante. As aberrações (aquilo que altera ou parece alterar a ordem natural) ganham corpo pouco a pouco, como qualquer feto, chamem-se Elon Musk ou Pablo Marçal.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
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