I
Desde sua fundação, Israel jamais esteve tão isolado, política e moralmente, quanto está agora. E olha que não é a primeira vez que o país comandado há quase duas décadas por Benjamin Netanyahu atrai a repulsa do que resta de senso de civilização no planeta. Excetuados os inquebrantáveis apoios do Império (ao qual está acoplado o Reino Unido) e da Alemanha, os aliados vão paulatinamente se calando, retrocedendo e desistindo do entusiasmo inicial com que se solidarizaram com o primeiro-ministro após os ataques do Hamas. E mesmo os incondicionais parceiros de sempre dão sinais de algum descontentamento na medida em que o revide, ou a vingança, não chega ao fim, a dimensão do morticínio não para de crescer e a desproporção vai se tornando escandalosa aos olhos até dos mais condescendentes.
II
Em Feliz Natal para as crianças da Palestina (24/12/23), a conta dos palestinos mortos pelos militares israelenses desde o início da invasão estava “em quase 20 mil”. Menos de 30 dias depois, são 25 mil. De acordo com o último relatório divulgado pelas autoridades sanitárias de Gaza, o número de mortos em 21/01/24 era de 25.105, distribuídos da seguinte forma: 12.345 (50%) crianças, 7.100 (29%) mulheres e 5.217 (21%) homens. Calculam também que há pelo menos 7 mil pessoas soterradas sob os escombros produzidos pelos bombardeios. Segundo o El País, as autoridades sanitárias da Faixa de Gaza estão publicando uma lista com os nomes, sobrenomes e o número do documento de identidade dos mortos nos ataques. É uma tentativa de resposta aos que questionam a confiabilidade da fonte. Não bastasse a evidência dada pela altíssima percentagem, sobretudo de crianças, até a revista The Lancet entrou no debate para verificar com um estudo científico a confiabilidade dos números (ver em The Lancet).
III
Naquela mesma matéria, o El País fez um interessante gráfico comparativo onde mostra que na guerra da Ucrânia, que tanta indignação provocou na imprensa e nos governos ocidentais e uma dor pungente no coração do Império, o mês com mais vítimas mortais, o primeiro, produziu 38 mortos por dia (não de crianças ou mulheres). Na guerra da Síria, entre 2014 e 2023, foram 45 as mortes diárias (id), no Iraque, entre 2003 e 2011, no pior mês, o primeiro, 238 mortos por dia e, finalmente, em Gaza, em 105 dias já são mais de 239 mortos diários, sendo que no primeiro mês chegou a 330 mortos por dia – repetindo, a grande maioria, 79%, crianças e mulheres.
IV
Enquanto isso, Netanyahu permanece impassível.
V
Algumas das chamadas de primeira página dos jornais da Espanha no dia 23 de janeiro último: a primeira, para o editorial do El País: “O Estado Palestino é Urgentemente Necessário”, a segunda, ao lado: “Espanha e Bélgica lideram a pressão para que Israel aceite uma solução de dois Estados”. No segundo maior jornal da Espanha, o La Vanguardia: “A União Europeia e o mundo árabe pressionam Israel para aceitar os dois Estados”. Talvez tenham sido ligeiramente estimulados pela pressão das ruas. No sábado, 20 de janeiro, dezenas de milhares de pessoas protestaram em 91 cidades da Espanha em apoio à Palestina, pedindo ao governo espanhol que se alie à demanda da África do Sul, que acusa Israel de genocídio, e exigindo a ruptura de relações diplomáticas com o Estado de Israel.
VI
A frieza, a determinação, a impassibilidade de Netanyahu é absolutamente extraordinária. A imutabilidade dessa frieza, dessa determinação e dessa impassibilidade impressiona cada vez mais a cada dia que se encerra. Não colocaria minha mão no fogo para a possibilidade de que inclusive o aumento significativo da pressão dos americanos (com, por exemplo, o corte no suprimento de armas) seja incapaz de modificar essa trajetória. No último final de semana, no entanto, parece ter havido algo de novo: o aumento dos protestos internos por parte dos parentes dos sequestrados. Isso sim, talvez possa quebrar a insensibilidade da cúpula israelense. Radicalizados e impacientes com a incapacidade do governo de libertar os 136 reféns que permanecem em mãos do Hamas, um grupo de familiares invadiu a sala de reuniões de uma das comissões Knéset (o parlamento de Israel). Eram pouco mais de 20 pessoas, mas eram 20 judeus israelenses gritando em defesa da vida dos seus filhos e filhas, irmãos e irmãs, pais e mães, avôs e avós, também eles judeus israelenses. E isso, sim, conta. A cena filmada foi imediatamente repercutida mundo afora e, muito provavelmente, também pelos telejornais israelenses. Outros protestos de parentes dos sequestrados vinham se acumulando nas últimas semanas. Coincidência ou não, os jornais começaram a semana noticiando uma proposta de trégua de dois meses feita por Israel em troca da libertação dos reféns – imediatamente rechaçada pelo Hamas.
VII
Também os loucos ignoram ou pouco se importam com a solidão e a repulsa dos que os rodeiam. Também eles são frios e determinados e impassíveis enquanto perpetram ações capazes de fazer tremer qualquer ser humano. Muitos deles, ao contrário, são apaixonados assassinos e gozam intensamente na execução dos seus atos e perversidades. Nem todos os perpetradores do holocausto tinham o mesmo perfil. Nem todos eram sádicos torturadores ou psicopatas crônicos, ainda que muitos o fossem. Contam, por exemplo, que Gregor Strasser, um dos próceres do hitlerismo no norte da Alemanha costumava se misturar com os participantes mais grosseiros nas brigas de cervejarias, mas relaxava lendo Homero na versão original. Eichmann, o gerente do extermínio, capturado, julgado, condenado e executado por Israel, era e se via apenas como um simples administrador, um exemplar funcionário seguidor de ordens, levando a cabo um complexo empreendimento para além do bem e do mal, mesmo ciente de que do que se tratava esse empreendimento era exterminar uns tantos milhões de homens, mulheres e crianças. Não são raros os políticos contemporâneos com traços de personalidade próximos aos desses homicidas e que cometeram atos passíveis de condenação como crimes contra a humanidade. Ao recém-falecido Henry Kissinger também tentaram levar ao tribunal de Haia justamente sob uma mui bem fundamentada acusação de crime contra a humanidade (a morte de 600 mil civis no Camboja e 350 mil no Laos, entre outras). Obviamente não havia a menor chance de prosperar. (Ver O Julgamento de Kissinger de Christopher Hitchens e o documentário da BBC, baseado no livro)
VIII
Mas Netanyahu e os seus parecem não se enquadrar em nenhum desses perfis. Terá ele certamente a frieza e a capacidade de cálculo de Kissinger, mas o supera de longe, pelo menos no que diz respeito à frieza, porque participa quase que in locus das ações que ordena. Se o alimenta alguma paixão é aquela natureza de paixão que serve de combustível para fazer mover o espírito bélico, a vontade de destruição do inimigo, que no seu caso vai para muito além do necessário e, até, para muito além da humilhação. A vontade da liquidação completa e absoluta. O desejo de vingar e exterminar. Haverá nesse impulso sanguinário também algo de messiânico? Ou será apenas a tradicional mistura de egocentrismo, cálculo, oportunismo, patológica vontade de poder, niihilismo moral e ausência radical de empatia humana que determina a conduta de algumas das figuras da política no nosso tempo e que no caso de Netanyahu parece ser prototípica?
IX
Voltando ao terreno da política no seu sentido mais simples e imediato, é preciso lembrar que o cálculo é sempre cálculo de variáveis que visam algum benefício ou a fuga de determinados riscos e prejuízos. No caso do primeiro-ministro israelense há algumas questões cruciais: uma delas é a própria sobrevivência, não apenas como chefe do governo, mas como político, já que corre o risco de ser preso. Em Israel, há pesquisas recentes informando de uma queda significativa nas cadeiras destinadas à coalizão de extrema direita que governa o país e a consequente perda da maioria, se as eleições fossem realizadas agora. A outra questão esteve presente em todas as ofensivas militares estimuladas e comandadas por Netanyahu e seus aliados, sempre sob o pretexto da imperiosa defesa da população civil de Israel contra a ameaça terrorista: o avanço, conquista e ocupação de terras pertencentes aos palestinos em benefício de novas colônias para cidadãos israelenses.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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