rumo

Na virada de ano, muitos se voltam para os prognósticos para o ano que vai se iniciar. Uma leitura rápida dos eventos permite apontar que o mundo que conhecemos mais de perto – as Américas e a Europa – caminha um pouco como uma nau sem rumo no próximo período.

Um dos indicadores tradicionais desse movimento é o crescimento da extrema direita. Identificada pela recente vitória eleitoral na Argentina, pelo respaldo apontado em pesquisas da candidatura Trump nos EUA em novembro (apesar das indefinições nesse momento se de fato poderá concorrer, ou não), pelas pesquisas que apontam o fortalecimento da extrema direita no Parlamento Europeu (que tem eleições no começo de junho), e por aí vai.

Conhecemos a índole conservadora e nostálgica da extrema direita, já que cria “passados gloriosos” para onde defende que devemos voltar, faz política normalmente olhando para o retrovisor, não tem proposta de futuro, em geral tem proposta de passado. Na recente vitória eleitoral de Javier Milei na Argentina, o candidato idealizou para onde gostaria que a Argentina retornasse – o final do século XIX. Um mundo onde um pequeno número de latifundiários rurais e empresários dedicados ao comércio exterior, com as vendas de carne, trigo e lã, e a importação de quase tudo que se necessitava para o consumo do dia a dia, convivia ao lado de uma massa empobrecida e sem direitos. Assim, o crescimento político da extrema direita normalmente é a expressão da ausência de propostas para o futuro.

Mas é também um sinal de que as outras forças políticas, seja a direita mais tradicional, o centro e a esquerda, tampouco apresentam propostas que parecem atrair o eleitorado, e é nesse vácuo que cresce a extrema direita. E não é porque não faltem temas para os quais propostas tenham que ser apresentadas. Neste momento, chamaria atenção para ao menos três temas que parecem constituir os pilares dos problemas para os quais teremos que construir soluções políticas rapidamente.

O primeiro diz respeito ao mercado de trabalho. Estamos nesse momento frente a um novo ciclo de transformações tecnológicas que reforçará ainda mais a flexibilização do trabalho e a submissão de uma massa de trabalhadores a um mercado de trabalho orientado pela ausência de vínculos mais formais e remunerações variáveis. O mundo onde o vínculo do trabalho formal era a expressão da cidadania está ruindo. Essa é uma ruptura expressiva, que afeta toda uma forma de vida que tinha se estruturado mesmo em sociedades onde a formalização do trabalho não era majoritária, mas podia representar um desejo. Sistemas de saúde e previdência foram organizados com base nesta estrutura anterior do mercado de trabalho.

A jornada usual de trabalho de referência, o mundo urbano, as rotinas da vida das pessoas, a educação, a cultura, e outros aspectos da vida, foram organizados no chamado “mundo ocidental” com essa base. A própria vida política se organizou sobre essa estrutura, com o aparecimento e crescimento dos partidos de orientação socialista, trabalhista ou social-democráticos, conforme o país. Não temos ainda uma proposta clara e que tenha capacidade de disputar o imaginário social a partir da nova base que se estrutura. A flexibilidade, que podia ser um enorme ganho para a qualidade de vida das pessoas, hoje na maioria dos casos aparece como um grilhão que aferra uma massa de trabalhadores e que precisa vender sua força de trabalho para sobreviver a condições de vida bastante árduas, do ponto de vista da rotina, e pobres, do ponto de vista da remuneração. Esse é um ponto a ser trabalhado.

O outro ponto nevrálgico é a questão ambiental. As condições do planeta estão se alterando rapidamente diante de nossos olhos, com todos sendo capazes de repetir o tempo todo reclamações sobre condições extremas de temperatura em suas regiões, da mudança, inconstância, escassez e por vezes excesso e virulência do ciclo de chuvas, da subida dos mares, do encolhimento dos rios, sem que isso se traduza em políticas consistentes que permitam ao menos reduzir o ritmo desse processo. As mudanças que talvez afetassem nossos bisnetos, hoje afetarão sem dúvida nossos netos, nossos filhos e, quem sabe até mesmo nós. Já estamos passando do ponto de não-retorno, sem que se seja capaz de construir uma proposta de futuro – e, que nesse caso, significaria que possamos ter algum futuro. Mesmo os que seguem denunciando essa situação de fato se conscientizam pouco de que a mudança passa por uma alteração profunda do modelo de produção e consumo ao qual nos apegamos, o que não pode ser reduzido a um debate sobre “transição energética”, embora esse tema faça parte.

Finalmente, temos a questão da violência, que volta a ser tratada como normal, depois de séculos tentando que ela fosse regulada. Isto está valendo para o interior dos estados nacionais, mas também para a relação entre estados nacionais. Não é só uma questão das guerras em curso, guerras sempre tivemos, a questão agora é que a resolução de questões pela guerra aparece como uma possibilidade normal. A violência está no dia a dia das pessoas, e sai das telas (do cinema, das tevês, dos computadores e dos celulares e suas redes sociais) para o cotidiano da maioria das populações do mundo, sem que haja algum tipo de condenação ou regulação mais firme do seu uso. Que a extrema direita aceite e incentive, é o normal. Que as outras forças políticas não condenem (ou, ao menos, se martirizem com o seu silêncio), isso é intolerável.

Enquanto não tivermos a construção de alguma resposta para estas questões, e outras que possam ser levantadas, a extrema direita vai nadar de braçada na política, pois a construção de narrativas sobre “passados gloriosos” parece mais fácil do que a construção de hegemonia sobre projetos de futuro. Ao lado dessa extrema direita, os asiáticos, China à frente, parecem ter projetos, para eles e para o mundo, mas entendê-los significa também uma mudança cultural de tal monta que é ainda mais difícil de defender. E, até que tenhamos respostas a essas questões, a nossa vida política seguirá parecendo uma nau sem rumo.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
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