Existem livros sobre os desaparecidos, mas talvez O congresso dos desaparecidos, o livro recém lançado de B. Kucinski, seja o primeiro em que eles contam suas histórias. Na Antígona de Sófocles, o Rei Creonte não permite o enterro do irmão de Antígona, mas essa o enterra, mesmo sabendo que seu ato seria condenado à morte. Muitas ditaduras desapareceram suas vítimas, mas as artes rememoram os crimes hediondos, os artistas buscam resgatar. Um rei assassinado fala como fantasma no início de Hamlet, e no livro Incidente em Antares, de Érico Veríssimo, os mortos saem dos túmulos e revivem. Agora, os desaparecidos ganham vozes. Além do que, os mortos são nossos visitantes noturnos nos sonhos. No inconsciente, os mortos estão vivos.
O congresso dos desaparecidos tem como narrador o Japa, que um dia, vagando perdido por São Paulo, chega à Praça da República. Senta-se numa mureta e pensa num distante passado, “quando a revolução era o destino, e derrotar um exército, mudar o mundo, tudo parecia possível. Que ingenuidade! Que ilusão! Foi quando um homem me olhou fixamente e disse: ‘Japa!’, e me estendeu a mão e nos abraçamos, e eu disse: ‘Rodrigues!’”. Ambos haviam desaparecido há 40 anos, e agora ali estavam juntos. Na conversa, Japa sugere um congresso dos desaparecidos. Rodrigues, após muito pensar, diz: “Que ideia poderosa essa do congresso, os espectros assombrando os vivos”.
No meio da leitura, comecei a recordar os argentinos desaparecidos, como a colega psicanalista Marta Brea. Ela foi sequestrada em plena luz do dia em uma Policlínica de Lanus, onde fiz a residência de Psicopatologia. Atualmente, há um parque em Buenos Aires, próximo ao Aeroparque – Parque da Memória –, em homenagem aos desaparecidos políticos. O lema do parque é: “No desaparece quien deja huellas” (Não desaparece quem deixa marcas).
Voltei ao livro quando Rodrigues, um dos desaparecidos, disse ao Japa: “Não se completou o rito social das nossas mortes, nós não perdemos só a vida, perdemos o direito a um túmulo. Você sabia que o direito de um túmulo está consagrado na nossa Constituição?”. Então lembraram emocionados do desfile da Escola de Samba Mangueira cantando: “São cruzes sem nomes, sem corpos, sem datas, memórias de um tempo onde lutar por seu direito é um defeito que mata”. Na longa conversa entre os espectros na praça concluíram: “Mas a revolução era uma utopia! Não é por acreditarmos na revolução que ela se torna possível”.
Há um entusiasmo dos desaparecidos durante o congresso, muitos falaram e imaginei a presença do gaúcho Ico Lisboa –irmão do músico Nei Lisboa – ele foi o primeiro desaparecido encontrado no cemitério em Perus/SP. O congresso teve mais de 200 presentes e muitos falaram sobre como foram torturados e mortos, mas também dos ideais de justiça social. Ao final, decidiram marchar para Brasília em defesa de seus direitos.
O livro está escrito num estilo emocionante como imagino a vida do Kucinski, que ingressou aos 12 anos no Dror, um movimento sionista socialista e a vida acelerou. Aos 21 anos foi morar num kibutz em Israel, numa coletividade agrícola, e depois retornou ao Brasil para cuidar de sua mãe, que estava muito doente. Estudou física, depois jornalismo, foi professor da USP, dirigiu revistas na luta pela democracia, e foi assessor de imprensa do primeiro governo Lula. Kucinski escreve sobre os desaparecidos políticos desde o livro K – Relatos de uma busca. O pai do escritor é quem busca pela filha, Ana Rosa Kucinski – professora de Química na USP, sequestrada e morta pela ditadura, figurando como desaparecida (sua ossada foi encontrada na Usina Cambahyba R.J.). K já é um clássico, um livro de várias edições e traduções. Toda arte é um trabalho de memória.
A memória dos mortos é preservada nos rituais funerários, como revela a Ilíada de Homero, o primeiro poema do Ocidente. Nela, Aquiles luta e mata o príncipe Heitor, e arrasta seu cadáver diante de Tróia. O rei Príamo implora para Aquiles o defunto de seu filho para enterrá-lo; o herói grego aceita, e nesse gesto se humaniza. Nesse sentido, o livro de B. Kucinski, que dá vozes aos desaparecidos, segue o caminho da humanização diante da pior das barbáries. Dar vozes aos desaparecidos é um dos caminhos para enfrentar os traumas de nossa História. A ditadura impediu que os jovens torturados, alguns esquartejados, fossem entregues aos familiares para serem enterrados. O livro O congresso dos desaparecidos integra a luta da memória contra o esquecimento, quem deixa marcas não desaparece. ( Publicado na ZH 27-28 de maio de 2023)
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Ilustração: Mihai Cauli
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