Os ensinamentos do Gueto de Varsóvia

Há exatos 80 anos, em 19 de abril de 1943, começava o Levante do Gueto de Varsóvia, capital na Polônia, quando centenas de judeus enfrentaram as tropas nazistas alemães.

O Gueto de Varsóvia era só ruínas após o Levante. Entretanto, abaixo da terra, alguns metros abaixo dos escombros, estavam os escritos mais importantes dos judeus durante o nazismo. Eram os arquivos secretos do Gueto de Varsóvia, conhecidos como o arquivo Oyneg Shabes –Alegria do Sábado. Secretos porque, se fossem descobertos seria a morte dos seus integrantes. O líder dos arquivos foi o historiador Emanuel Ringelblum que escreveu, por exemplo, sobre os meninos mendigos do gueto: “É comum que crianças mendigas morram de noite na calçada. Acabei de saber de uma cena terrível em que um mendigo de seis anos de idade agonizou a noite toda, sem conseguir nem se arrastar para pegar um pedaço de pão que lhe tinham atirado”.

O primeiro lote do arquivo foi encontrado em setembro de 1946, e o segundo lote só em dezembro de 1950. Já o terceiro segue desaparecido. Nos arquivos há uma variedade de materiais: registros públicos, cartazes, folhetos, ingressos, convites, correspondência pessoal, jornais periódicos, cartas e diários. Dos sessenta integrantes, só três sobreviveram e era o secretário, Hersh Wasser, que sabia onde estavam escondidos. Tudo foi guardado em tachos de leite e caixas de metal, pois tinham que resistir ao fogo e à água. Algum leitor pode perguntar por que os arquivos são tão importantes se pertencem a um passado distante.

A memória é um imperativo da cultura, é até um mandamento bíblico – Zakhor em hebraico –, lembrar é um dever. A memória não é só um dever, é muito mais, é uma fonte essencial de aprendizagem, pois uma pessoa se constitui por meio de identificações. Cada um é marcado por gerações passadas, pois a realidade psíquica expressa os laços simbólicos que constroem o ser falante. Aprender com a história pessoal, familiar e social enriquece a gente. Um exemplo são as palavras de Gustawa Jarecka, sobre o ato de escrever no gueto:

  • “Estamos com a corda presa no pescoço. A vontade de escrever é tão forte quanto a aversão pelas palavras. Odiamos as palavras porque demasiadas vezes encobrem o vazio ou a vileza. Desprezamos as palavras porque empalidecem diante da emoção que nos atormenta. E, no entanto, outrora, a palavra significava dignidade humana e era o melhor bem do homem – um instrumento de comunicação entre as pessoas. O registro deve ser arremessado como uma pedra sob a roda da História para detê-la. É possível perder todas as esperanças, menos uma, que o sofrimento e a destruição desta guerra façam sentido quando forem vistos com um distanciamento histórico”.

Sua esperança estava posta no futuro, e morreu em janeiro de 1943 com seus dois filhos, no vagão que os levava para Treblinka. Essa história está no início do livro “Quem escreverá nossa História?”, de Samuel D. Kassow, um dos primeiros livros sobre os arquivos do Gueto de Varsóvia, leitura essencial sobre o Holocausto. Já Raquel Auerbach foi uma das três sobreviventes do grupo dos arquivos. Foi também a coordenadora de um sopão que todos os dias era servido aos que não tinham o que comer no gueto. Raquel fez as faculdades de Psicologia – quando estudou a obra de Freud, que admirava – e Filosofia. Na década de 30 do século passado se mudou para Varsóvia, onde trabalhou como jornalista e viveu no gueto. No início de 1943, fugiu e sobreviveu na clandestinidade, e depois ajudou na busca dos arquivos. Em 1950, foi viver em Israel e trabalhou no Museu Yad Vashem, o museu do Holocausto em Jerusalém. Teve ainda participação importante no julgamento de Adolf Eichmann e depôs como testemunha. Se Hanna Arendt tivesse conversado com Auerbach durante o julgamento, não teria escrito que Eichmann não podia diferenciar o bem do mal. Teria aprendido que o nazismo, o racismo, nunca é banal.

A memória é essencial ao ser humano, mas não se restringe ao que se recorda, pois há na realidade psíquica um tempo que não passa – o inconsciente –, onde estão as marcas mnêmicas gerando efeitos. Esse passado se manifesta, por exemplo, nos sonhos e sintomas. Já a nível social, há o historiador, que é uma espécie de médico da memória, trata dos ferimentos, trata de recuperar o passado de uma família, um povo, a humanidade. Convém aprender com o passado e os arquivos do Gueto de Varsóvia têm muito a ensinar. Além do que, o genocídio e a crueldade não são eventos só da História, seguem presentes, ocorrem perto da gente. Escrevo para lembrar que não devo ser indiferente. (Publicado originalmente na Zero Hora, em 15/04/2023)

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Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone 

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